Cronicas - Mini Contos - Contos

Os mil reflexos de uma solidão

Perde-se sempre alguma coisa quando olhamos para o lado e fingimos que não vemos ou quando baixamos o olhar por não querermos ver.

Foi, perante este rápido pensamento, então, que ela retomou a postura inicial, ligeiramente altiva, e ergueu os olhos para a mulher que a fixava de frente, lhe estudava os gestos e apreendia os sinais. Tentava, por seu lado, descodificar os traços físicos e psicológicos daquela figura que a enfrentava tão minuciosa quanto curiosamente. Podia dizer-se, até, que se estudavam mutuamente.

Aquela não era uma mulher de quem se pudesse dizer que era velha, ainda muito longe disso, mas dava a sensação que se queria mostrar como tal ou, pior, não se importava nada em parecê-lo e havia gritos de tristeza e amargura riscados fundo na sua pele ligeiramente flácida. No geral, tinha traços firmes que eram de uma beleza comum, avessa a grandes alardes ou demonstrações públicas daquilo que sabia serem as suas melhores armas.

Olhava-a de frente e, sem ponta de desdém ou inveja, achava que aquele cabelo já passara por melhores dias. Estava desalinhado, sem gosto e com as pontas quebradas. Vários trilhos em contraste indicavam a presença alarmante de precoces cabelos brancos e, talvez, precisasse mesmo de alguma água.

A esta observação respondeu-lhe um olhar triste magoado… aqueles olhos tinham ausência de brilho, de mensagem. Já tinham tido, muito provavelmente, uma existência diferente mas, por ora, apenas transmitiam a imagem de um deserto noturno, vazio e distante.

Estava cansada, notava-se, e as sobrancelhas, a precisar de mais atenção, mostravam-se ligeiramente arqueadas numa interrogação brusca daquele momento. Acima delas, começava a desenhar-se um traçado orográfico identificador de preocupações constantes, de decisões eternamente adiadas, de felicidade diluída e perdida de esperança em esperança.

Franzindo, agora, mais o sobrolho, tentava perscrutar o que lhe podia ir na alma, uma vez que, dizem, os olhos são o seu espelho, mas não o conseguiu, pois encontrou uma barreira tenaz, como se ela lhe dissesse: “ – Aqui, não entras, pois já nada mais me resta, para além da (pouca) dignidade!”.

Endureceu-se-lhe, momentaneamente, o semblante depois desta tentativa, quase imoral, de querer entrar num templo proibido, sem autorização nem convite, e ter acesso à sua arca dos segredos, onde tinha guardado momentos e recordações dos quais já nem ela própria se lembrava! Tinha que assim ser, depois de ter perdido, constantemente, parte de si, por todos os caminhos e pessoas que fora percorrendo. Ser mais uma mulher, é fácil; difícil, pois, é ser mulher, e esta dificuldade paga-se caro e escreve-se em traços profundos e definitivos, como cicatrizes, na face e na alma!

Sorriu, melancolicamente! Algo a deve ter levado a tal. Talvez tivesse sido a ironia de estar a ler, estando a ser lida…um sorriso misterioso e quase juvenil bailou-lhe nos lábios, na boca que ainda atraía desejo, na boca que beijava e mordia as palavras certas e a carne de quem as dizia, na boca que ainda tinha voz para falar, para chamar e, cada vez mais, para concentrar alguma atenção…

Abaixo do queixo bem desenhado, um pescoço algo hirto, envolvido numa pele que se dobrava em curtos refegos cruéis e suportando uma cabeça que àquela hora já pedia paz e sossego. Deslizando os olhos, oferecia-se uma visão desnuda e generosa dos ombros que se mostravam, agora, algo descaídos, virados suavemente para a frente. A postura altiva dera lugar, inexoravelmente, com a crueza que a espuma dos dias tão bem sabe proceder, a uma pose criada apenas para o dia-a-dia e dependente das circunstâncias ou das pessoas presentes. Na maior parte das vezes, porém, descansava dobrada em si mesma, recolhida na indiferença que a alegria e a felicidade nos outros lhe proporcionava.

Não conseguia aguentar aquela pressão, aquele desafio, e voltou a desviar o olhar, e voltou a perder alguma coisa, sabia-o…

Se um amigo pode ser o caminho e um inimigo um muro, o que poderiam ser aquelas duas caras, uma à outra?! O caminho ou o muro? Amigas ou inimigas? Iriam conhecer-se melhor? Determinaria um futuro melhor? E será que era assim tão importante sabê-lo?

Prendeu o cabelo, desfez a maquilhagem, soltou o cabelo, de novo, apagou a luz do toucador e deitou-se, regressando a si mesma, pois não lhe importava nada a dor da solidão, o que lhe doía mesmo era a solidão na dor!

Talvez estivesse, apenas, cansada!…

A noite nada de novo lhe trouxe. O escuro envolvente foi entrando nos olhos e, estes, foram absorvendo a luz que o escuro possui. A noite tornou-se clara. Clara demais… as pálpebras despertas reclamavam o dia, a luz e as imagens criadas pelo espelho inimigo e pela imagem daquela mulher evitando o seu olhar atormentavam-na e dispersavam-se num caos de raiva e raiva!


O homem do gato…

man-walking-catSaía de casa, descia a escada do segundo-andar para o rés-do-chão e, já na rua, lá ia ele, com a companhia do seu animal e a trela pela mão, passear ao fresco dos fins de tarde.

Umas vezes, passeava pelos canteiros de relva junto ao bloco de edifícios do bairro suburbano onde morava e, outras vezes, ficava junto à porta do seu prédio, saboreando aqueles momentos únicos para ambos.

Ninguém é uma ilha e todos nós precisamos, em alguns momentos da vida, de companhia. A solidão azeda-nos e definha-nos. Provavelmente, os gatos sentirão o mesmo, relativamente às suas companhias.

Um gato doméstico era o que o homem tinha por companhia, aparentemente mais doméstico do que ele próprio. Isto, porque eu creio que passava mais tempo em casa, no conforto da sua independência solitária que, apenas, partilhava com o companheiro.

Nunca soube o nome do homem, nem o do gato. Nunca me relacionei com nenhum deles. Apenas reparava neles pela curiosa relação pública pouco comum, no meu relativo conhecimento do que é público e do que é comum.

De um dia para o outro, como um dia após outro, o homem do gato deixou de ser o homem do gato, porque o gato ficou sem o homem e o homem, consequentemente, sem o gato.

O homem já não passeia o gato pela trela, na rua, nem o gato serve de pretexto para o homem passear e recolher os aromas frescos do entardecer.

O homem do gato já ali não mora e, talvez, o gato também não…

Na sua varanda também já não há plantas para regar, nem roupa para secar…

O reposteiro da sala, com os estores levantados, está ligeiramente desviado, como se alguém tivesse olhado para a rua por uma última vez…

Na rua, já não se vê o homem do gato, nem o gato, mas passou a ver-se uma jovem, a passear outros dois animais de companhia, agora vestida de preto. Pelo homem do gato, na minha perspectiva.

Afinal, alguém mais ficou sem o homem, para além do gato…


Brevíssima história…

1920x1200_waiting_for_the_reaper_to_come-1575886Brevíssima história do “senhor” das mais absolutas e profundas certezas, que jamais se enganou nos seus mui elaborados exercícios de raciocínio, que nunca vacilou um mícron, sequer, nas suas irredutíveis decisões, que sempre imperou nas suas muito sólidas qualidades de comando, que nunca se dignou repensar quaisquer atitudes suas, que jamais pensou na efemeridade dos seus passos convictos e seguros mas que, como qualquer outro ser, diferente dele, com dúvidas e humildade, foi hoje “embrulhado” numa folha de jornal – num dia tão comum como qualquer outro dia, para desencanto da sua fina personalidade e da sua sóbria e sábia forma de ser –, na secção de necrologia.

Tal como outro ser, mais humilde, mais simples, mais solidário, mais amigável, mais…humano, terminou o seu ciclo de vida, deixou de respirar, o sangue deixou de circular e o cérebro findou a sua missão!

Morreu.


Vertigem

Os ventos desencontrados equilibravam o seu corpo abatido, enquanto avançava pelas fendas da imponente falésia. Não andava, nem voava: apenas, ia…

Daquele ponto, podia ouvir as imprecações das águas, remetidas contra as rochas, bem abaixo dos seus pés.

Parou, maquinalmente. Sentia a vertigem do abismo.

Ora, se sentia resoluto, ora, inseguro. Sempre assim tinha sido.

Nunca ninguém percebera os sinais. A inadaptação. As ausências repentinas. A longa solidão voluntária. O vazio.

O iniciar de uma conversa mais íntima, mais profunda, um lamento…

Mas, nada!

Agora, todos iriam mostrar espanto. Talvez, alguma tristeza momentânea.

Entre um comentário futebolístico e a “bica” iriam, finalmente, falar dele. Durante alguns dias.


Seres de água

“ Terra. Planeta azul. Bola de água. Terra-mãe de uma infinidade de seres multiformes e tão distintos, entre si. Sem se deterem, numa pressa vã, estes seres efémeros colidem, lutam e anulam-se, na defesa da espécie e da dignidade que a Natureza reservou para cada um deles.

O Homem, ser supremo e inteligente, segundo essa mesma inteligência, vai aniquilando tudo o que é obstáculo à sua vontade. Mesmo dentro da sua espécie, divide-se, subalterniza e diferencia. Se tiver que humilhar ou matar, fá-lo-á mas, na maior parte do tempo, finge que ignora o seu semelhante.” – e, assim, seguiu o discurso escolástico de Fran, o conceituado e experiente humanista no liceu da terra onde morava, perante uma audiência, na sua maioria, pouco respeitadora, ignorante e surda a alguns conceitos básicos de vida.

Ele percebia muito bem que apenas monologava mas mantinha uma secreta esperança que houvesse, pelo menos, um aluno que o ouvisse, que se interessasse ou, quem sabe?, que necessitasse de ouvir aquelas palavras, para entender melhor o seu dia-a-dia, o porquê da sua situação menor, em determinado estrato social.

Mesmo os seus colegas, muitos deles, desdenhavam e ridicularizavam os seus pontos de vista, acerca do papel reservado aos humanos, relativamente às outras espécies na Terra e também das regras retrógradas e cavalheirescas, com uma visão quixotesca que ele possuía da sociedade dita moderna.

Ele sabia qual o lugar em que o tinham colocado na escala de relacionamentos entre os seus pares, da forma enfadonha com que era olhado pelos alunos e da total indiferença dos pais. Ele sabia e sentia uma mágoa imensa, intensa e dilacerante. Estava deslocado e só e mais só se sentia sempre que se arrastava para casa e lhe respondia um silêncio atroz e profundo, na chegada: era o som da solidão!

Nos antípodas desta solidão, mesmo no outro lado da rua, morava Alex, um agente imobiliário, bem-parecido, cheio de vivacidade, que se deslocava sempre com um sorriso profissional, num automóvel topo de gama, fazendo uso constante de telemóveis de última geração, aprumado na sua fatiota manufacturada por um dos poucos alfaiates da região e transmitindo, a todo o momento, a imagem batida e repetida pelos meios sociais daquilo que era um homem de sucesso.

Alex e Fran não se conheciam. Sabiam da existência um do outro e, como a maior parte da humanidade, fingiam que se ignoravam. Nenhum deles era padrão para o outro.

Ao contrário de Fran, Alex passava todo o dia rodeado de gente que lhe dava atenção. Os colegas da agência, os interessados em comprar, em vender, em permutar, em alugar ou, apenas em conversar, preenchiam todos os minutos dos seus dias que, segundo ele, deveriam ter 48 horas!

Alex tinha uma agenda repleta de contactos, desde homens e mulheres de negócios até coveiros, passando por todo o tipo de funções sociais. A todos tratava com a consideração e simpatia que nem sempre, diga-se em abono da verdade, eram retribuídos pelos clientes! Para alguns destes, Alex era um utensílio de momento que, depois de usado, era religiosamente depositado na estante do esquecimento. Ele sabia-o mas aprendera a viver bem com esta faceta ingrata do seu tipo de vida.

Na agência tinha tido sempre uma boa equipa de colegas e poderia, em alguns casos, até, esperar que tivessem procedimentos de amigos. Estava ali havia alguns anos e, neste período, muito se tinha alterado: as cadeiras já tinham conhecido muitos corpos, uns que permaneciam mais tempo e, outros, muito pouco. Tudo se tinha resumido a qualidade e a perseverança.

No período áureo da sua actividade, Alex tinha ganho muito dinheiro e mudara-se de uma casa mais longe e modesta para a casa arejada e quase luxuosa onde habitava agora, ele, a esposa e dois filhos.

Naquela época, a vida corria-lhe de feição: estava mesmo no epicentro do boom imobiliário, era ágil no raciocínio, tinha uma adequada visão do mercado, era educado no trato com os clientes, sagaz suficiente para não se deixar enganar e os negócios vinham ter com ele, sem que ele necessitasse fazer muito por isso. Ele era o homem certo, no local certo, no momento certo!

No entanto, alterando um pouco o ditado popular “não há mal que não acabe nem bem que sempre dure!”, também esta situação de excepção estava a chegar ao fim. A agenda de contactos não lhe correspondia como antigamente, os colegas estavam na mesma situação aflita que ele e mostravam facetas para as quais ele não estava preparado, o dinheiro baseado em comissões começava a rarear e, como corolário, a família começava a dar sinais preocupantes e a desagregar-se, aos poucos. Podia dizer-se que ele ainda não se arrastava para casa mas já havia silêncio à sua chegada…

Depois de fechar a porta de casa, à sua chegada, Fran passava directamente do hall de entrada para o escritório, evitando olhar para o que quer que fosse. Tinha feito daquela sala o seu refúgio, o seu covil. Até um saco-cama amigo estava prostrado no chão, à espera do seu corpo desolado e cansado. Todas as outras salas da casa estavam fechadas, mas nem sempre assim tinha sido.

Fran tinha tido uma infância feliz! Os pais eram pessoas de bem, honestas, trabalhadoras e muito interessadas no êxito e felicidade do seu único filho. Apesar de não serem abastadas, conseguiram oferecer-lhe a possibilidade de ele conquistar um curso superior e ele não os desiludiu, aproveitando de mãos abertas esta preciosa oferenda.

Nos tempos de faculdade, tivera a suprema felicidade de conhecer, oriunda de outro curso, aquela que iria viver consigo cada segundo das suas vidas como se fosse o único! Ela era uma mulher fantástica, idealista, com princípios morais e éticos a condizer com os seus. Era carinhosa, inteligente e linda! O seu sorriso iluminava-lhe a alma, semeava-lhe forças desconhecidas nas suas fraquezas e desbravava-lhe horizontes quase impossíveis de sonhar! Ele sempre tentara retribuir tudo o que dela recebia, em doses superiores, mas achava que não tinha talento para tal, por um lado, e que era impossível alguém ser mais feliz do que ele, por outro. A felicidade teria sido máxima, se tivessem nascido filhos mas … nem um tiveram.

Recorreram a especialistas, ouviram outras experiências idênticas, analisaram várias hipóteses mas debateram-se sempre com um obstáculo temido e temível: a doença nela instalada que se alastrava, como um inimigo silencioso e letal. Mas não seria isso que os derrubaria, pois estavam convictos de que queriam ser felizes para sempre, enquanto o sempre durasse! Não o poderiam ser com filhos, seriam apenas os dois, muito e eternamente!

Maria, de seu nome, tão simples e tão bonito, era bióloga e dedicava-se, especialmente, ao estudo da água, do mar e dos seres que nele habitam. A bióloga-marinha dizia que todos nós somos água, porque somos vida e que a água é vida e que um dia voltaríamos ao mar, de onde saímos nas origens. Dizia, ainda, que gostaria de ter sido peixe para poder sentir a água escorrer-lhe pelo corpo, contínua e livremente. E ele dizia-lhe só que ela era água, era mais que isso, era a sua sereia! Quando Maria faleceu, Fran ofereceu o seu corpo, em cinzas, ao mar, sabendo que isso a faria feliz, permitindo que regressasse às origens em que acreditava… Fran morreu, também ele, naquele instante, mas não se transformou em cinzas nem em água, continuou em sofrimento vegetando na parte sólida da Terra.

O que era aquela casa, sem ela? O que era ele, sem ela? Perante este vazio, esta inútil forma de vida, sem ligações de espécie alguma, nem vontade de ter, com alguém, resolveu fechar o ciclo e voltar ao lar paterno, à casa da sua infância feliz. A casa estava fechada, desde que os pais tinham realizado a sua última viagem, um imediatamente a seguir ao outro. Era uma casa humilde, numa aldeia do litoral sul, perto de uma praia que acolhia veraneantes sedentos de tranquilidade e água.

Fran recolheu o essencial, entre livros, documentos e roupa e partiu, devagar, sereno e sem hesitações. Ia regressar ao lar, às origens.

O regresso ao lar, inicialmente, acolhia Alex calorosamente, com os filhos pendurados ao pescoço e a esposa sorridente, perante aquele cenário ternurento. Depois, vinha a vez dela, ainda com as crianças baloiçando nos braços do pai, e a chegada era selada com um abraço caloroso e beijos. Que tempos maravilhosos eram aqueles! Contavam-se as peripécias do dia que chegava ao fim, repreendiam-se os filhos suavemente, com um olhar temporariamente castigador, quando havia razões para tal, e faziam-se planos para tempos que nem se pensavam poderem nunca chegar. A vida era bela e não havia fim à vista! O dinheiro escorria-lhes pelo corpo como água e saciava qualquer desejo que surgisse na vasta fantasia dos seus sonhos.

No entanto, com a crise social, veio a crise familiar e ninguém estava preparado para a sua vinda. A esposa de Alex, Ana, nome simples e bonito, era uma mulher muito prática, moderna e pouco dada a idealismos, que dependia do estilo de vida que lhe fora proporcionado, primeiro pelos pais e, depois, pelo casamento, onde nunca sentira precariedade de espécie alguma e sempre tivera os últimos modelos que iam surgindo em roupas, acessórios, penteados, sapatos, joalharia, perfumaria e todos os vastos campos que tentam e preenchem o género feminino.

Ana gostava, ainda, de sair com as amigas, de ir às compras como forma de descontrair, de frequentar ginásios e spas, de manter os filhos nos melhores infantários e colégios e de se socializar com outros casais do mesmo estilo e nível de vida que lhe tinha sido proporcionado, até então. Toda esta idílica paisagem estava, repentinamente, a ruir sem se fazer anunciar e alguém iria sofrer…

Assim, ao decréscimo acentuado de dinheiro, juntou-se o decréscimo de atenções e carinhos, o aumento da discórdia, mesmo nas situações mais mesquinhas e menores, o crescimento dos filhos neste ambiente crispado e o natural evoluir e acumular do desalento e afastamento entre os membros da família. Estavam todos a precisar de vitaminas emocionais e, como ainda havia algum dinheiro guardado como pé-de-meia, embora pouco, foi decidido que iriam passar uns dias a uma aldeia do litoral sul, perto de uma praia que acolhia veraneantes sedentos de tranquilidade e água. Como eles.

Desta forma, recolheram o essencial e partiram

Com o essencial resumido a uma pequena mala, Fran chegou à casa de campo, onde saboreara uma juventude feliz, e ainda conseguia sentir a presença dos pais com o seu sorriso acolhedor e pacífico, dando-lhe as boas-vindas. Tinha chegado ao ponto de partida. A tranquilidade do local era recortada, como sempre, pelo apelo das ondas, da água que chamava por ele. Arrumou os poucos pertences, desfrutou da doce saudade dos móveis e recantos antigos e marejou o olhar nas fotografias expectantes espalhadas pela casa. Depois, descansou. Já era quase noite quando adormeceu, enleado em recordações. Acordou, perto do amanhecer, com o chamamento do mar e nem tentou, sequer, resistir-lhe. Encaminhou-se para a praia deserta, sentou-se na areia fria e cerrou os olhos. A água continuava, insistente, a chamá-lo. Tinha voltado a casa mas, ainda, não tinha voltado ao lar. Levantou-se e dirigiu-se para as ondas que, suavemente, lhe molhavam os pés, num gesto humilde de quem recebia que voltava a casa. Agora, sim, tinha chegado!

Assim que chegara à casa alugada, Alex e a família, arrumaram os largos pertences de quatro pessoas e, pelas janelas abertas generosamente, admiraram a praia, não muito longe. O dia estava a chegar ao fim e a água atraía as suas vontades. Logo pela manhã do dia seguinte, iriam todos usufruir de banhos retemperadores e divertimentos naquela areia fina e limpa que entrava na água calma e a ela se unia. Esta imagem criava a metáfora ideal para aquela família. Deitaram-se cedo e adormeceram facilmente, devido ao cansaço da viagem. O sono de Alex foi povoado por sonhos estranhos e acordou com o chamamento do mar, ao qual não tentou, sequer, resistir. A família dormia em sossego e paz e ele encaminhou-se para a praia deserta mas já aclarada com alguma luz de um Sol que não tardaria a aparecer.

Quando lá chegou, viu a silhueta de um homem junto ao mar, em pé, caminhando lentamente ao longo da praia. Sentou-se na areia fria e cerrou os olhos. A água chamava-o. Levantou-se e dirigiu-se para as ondas que o saudaram humildemente. O homem que avistara, anteriormente, estava agora mais perto, parecia-lhe algo familiar e podia ver que se debruçava, de vez em quando, apanhando aquilo que lhe parecia ser seixos e enfiando-os, alternadamente, nos bolsos dos calções. Não deu grande importância ao facto e decidiu apreciar a Natureza, aspirando a humidade e o odor próprio do mar e olhando o Sol ao longe e os raios do seu amanhecer estendidos languidamente na água. Descontraiu e deu por si a olhar para o chão, à procura de seixos. Havia alguns bastante interessantes. Estava tão absorto na sua observação que nem se apercebeu da proximidade do outro homem que, depois de o saudar cordialmente e lhe oferecer dois pequenos seixos o olhou bem fundo nos olhos e, num tom melancólico mas decidido, disse:

“Viemos da água e somos água. Temos um ciclo de vida, como água que somos. Voltar ao início do ciclo, é o nosso fim, o objectivo final. Para que o círculo se feche. Porque se a água é vida, a vida é água que escorre pelo nosso corpo, sem se deter, e retorna à Terra: escapamos, assim, de nós próprios… é hora de voltar ao lar! Tenho alguém à minha espera”

Ditas estas palavras, o homem dirigiu-se para a água e, calmamente, entrou pelo mar dentro. Caminhava em direcção à luz proveniente do Sul nascente, esperando por ele na linha do horizonte. Devagar, sereno, sem hesitações e sem nunca olhar para trás, todo o seu corpo se foi transformando em água, até os parcos cabelos desaparecerem.

Como que hipnotizado pelo súbito pesado silêncio, pelas palavras que estalavam em ressonâncias e ecos dentro de si, pela paisagem que absurdamente se esvaziara, pelo frieza da realidade, pela incapacidade e impotência que lhe prendiam os gestos, pela inabilidade em compreender e agir, pelo seu egocentrismo que lhe fazia crer ser ele o único sofredor do Universo, o homem que ficara na praia não reagiu, apenas perdeu as forças, tombou de joelhos na areia molhada e, com os punhos cerrados em torno dos dois seixos que lhe foram oferecidos, chorou… e as lágrimas escorreram-lhe pelo corpo, sem se deterem, retornando à Terra-mãe. Também ele era água, afinal!


Passou um anjo, por aqui…

…aos poucos, ia recuperando a consciência. Os sons surgiam-lhe quase imperceptíveis, difusos, longínquos e não lhe apetecia, ainda, entreabrir as pálpebras ou, talvez, fosse tudo receio. O medo invadia-lhe a alma e entorpecia-lhe a vontade. Já teria terminado tudo? Teria corrido bem? Estaria livre de perigo? Iria ser, de novo, uma mulher irrequieta e pronta a viver? Voltaria a sonhar e a plantar esperanças em cada dia que passasse? Estaria alguém ali, junto à cama do hospital?…

– Júlia… estás a ouvir-me, Júlia?

Afinal, ela não estava sozinha! Aquela voz sussurrava-lhe junto à face e reconhecia-lhe o calor e o tom e continuava a falar.

– Já passou tudo! Já está! A operação correu muito bem!!!

Ao ouvir estas palavras, não conseguiu evitar um sorriso, pálido e assimétrico, quase um esgar, e descerrou as pálpebras.

Junto a ela, com ar de quem não dormia pacificamente há algum tempo, estava o seu companheiro de alguns anos. As lágrimas escorriam-lhe pela face abaixo, de alívio e felicidade.

Olhavam-se e, isto, bastava, de momento.

Nunca tinham tido uma vida repleta de amor e de carinho. Os dois eram muito diferentes, um do outro. Talvez, por isto mesmo!…

A mão dele procurou, como quase sempre, a dela mas, desta vez, ela não a afastou, com pretextos vários e sem nexo, como o fazia tantas vezes. Por falta de forças, por agradecimento ou levada, apenas, pelo momento, a mão dela recebeu a dele e segurou-a carinhosamente. Cerrou os olhos, de novo. A luz, apesar da cortina da janela do quarto do hospital estar corrida, ainda estava muito forte para si e feria-lhe as retinas.

Na intimidade da penumbra dos seus olhos fechados meditou, com a calma com que raramente o fazia, sobre a vida, a sua vida. A vida pode ser muito curta e insignificante mesmo, se não lhe der valor, se não for amada, se não amar! Tinha que aprender a ser feliz! Estava feliz! Sentia todas as suas feridas a fechar! Naquele momento, percebia que recuperava para a vida, para os sonhos e ilusões do dia-a-dia. Mesmo que voltassem a acontecer momentos menos felizes, ela ultrapassaria tudo com a certeza de que o peso dessa infelicidade nada significaria, comparado com a provação pela qual estava a passar…

– O cirurgião já cá esteve – continuou o companheiro – e disse que o transplante tinha sido perfeito! O fígado do dador estava em óptimas condições, apesar da idade dele! Já merecias ter alguma sorte na vida, não é?! – concluiu ele, como se a sua presença na vida dela não significasse nada, como se não tivesse valor ou não lhe desse felicidade… e, talvez, esperando que ela lhe dissesse que já tinha tido muita sorte na vida, por o ter como companheiro!

Era assim que ele era ou talvez fosse assim pela quantidade de vezes que ela o tinha feito sentir tal!

Mas, ela gostava mesmo dele! Ele não o sabia, porque ela raramente o dizia e, mais raramente, ainda, o fazia sentir. Era fria e distante e parecia pouco carenciada, enquanto ele era ávido pela sua atenção, pelo seu contacto, pelas suas palavras e afecto… era semelhante a um cachorrinho e estava, naquele momento, mais feliz que nunca: estavam ali, apenas, os dois, sem discussões, sem olhares recriminadores, sem repulsas, mão na mão…

– Obrigado, José… – sussurrou ela, dirigindo-lhe um olhar agradecido e terno, como que a tentar dizer-lhe que o amava mas que não sabia nem conseguia dar-lhe esse amor na forma e na quantidade que ele precisava e merecia!

Durante algum tempo, deixaram o tempo passar e saborearam um momento que talvez não se repetisse e ambos o sabiam.

Estava cansada, abalada e dorida. Tinha o corpo ligado a tubos e os pulsos presos à cama, para evitar que, inadvertidamente, algum gesto incontrolado a desligasse do balão de soro.

Cerrou, de novo, os olhos. Qualquer movimento que tentava fazer agudizava a dor e parecia-lhe reabrir a ferida suturada da operação que, apesar de extremamente dolorosa, lhe doía menos que outras feridas que sangraram para dentro mas que passaram para fora. Sentia que devia fechar essas feridas mas não conseguiu evitar trazer, à memória do momento, de entre várias tristezas da sua vida, a tristeza maior, aquela que maior dor lhe provocava: a ausência do pai!

O pai tinha sido, para ela, na infância e em grande parte da adolescência, o Sol da sua vida, o centro do seu Universo, a fonte de energia e de amor que lhe servira de farol! Ele era tudo aquilo que ela iria encontrar de bom no homem que, depois, a acompanharia na vida…ele era tudo e passara a ser nada! Já quase mulher, os pais tinham-se separado e ela tinha ficado com a mãe. As duas começaram por se culpar, de tudo e tanto que concluíram que ele era, afinal, o grande e único culpado e que as tinha abandonado… às duas! A partir daí, o pai, essa figura enorme da sua vida, essa alegria no olhar, esse riso saudável e feliz, transformara-se em vilão e fora afastado da proximidade das suas vidas, para bem longe, precisamente por ela! Jamais lhe perdoaria!!! No entanto, agora sentia, no vazio da sua ausência, que a ferida se ia fechando e sabia que o seu coração palpitaria de felicidade e alegria se ele ali entrasse!

– Júlia… a tua mãe já chegou.

Abriu os olhos e olhou para a entrada do quarto. Ali estava a mãe, olhando-a silenciosa e ternamente. As duas conheciam-se muito bem e faziam um bom par de amigas. Apoiavam-se e, por vezes, suportavam-se. Acima de tudo, também se amavam! Os olhos marejaram-se e abraçaram-se, delicada e prolongadamente.

– Olá, miúda! – conseguiu dizer a mãe.

– Olá, miúda! – soprou Júlia.

– Antes de vir para aqui, passei pelo gabinete do médico que me disse que irias ter alta, dentro de poucos dias. – acrescentou a mãe. – Como é que te sentes?

– Sinto-me… o que já é bom! Sou mesmo uma sortuda!

Sorriram os três, com estas palavras, que teriam tido um sentido irónico antes de se conhecer o resultado das análises que indicavam a grave doença hepática que levou ao transplante mas que, ditas naquele momento, não podiam ser mais verdadeiramente sentidas.

Tinha, com efeito, tido muita sorte! Ela encontrava-se extremamente debilitada e necessitava, com extrema urgência, de um fígado novo ou, então, de parte de um, que lhe permitisse substituir o que tinha doente para, depois, se desenvolver até ao tamanho e estado de um fígado normal. Para um transplante hepático total, ela teria que se juntar a uma longa e infindável fila de espera, aguardando, em agonia diária, por um dador que falecesse, enquanto que, se houvesse alguém compatível e saudável, independentemente da idade, e se voluntariasse a doar parte do fígado, mesmo sabendo o alto risco que correria, rapidamente a operação aconteceria. Ninguém na família, mãe, marido, tios e primos chegados, estavam nessas condições: ou porque não fossem saudáveis, ou porque o sangue não fosse compatível, ou por outras razões meramente de ordem médica ou, ainda, porque não estivessem preparados para correr tamanho risco, não havia esperança por perto…

No entanto, ninguém desistiu e espalharam o pedido pelos jornais e pelas listas de endereços electrónicos, fornecendo o tipo de sangue, a identidade e outros pormenores dela, tentando dar uma maior veracidade à verdade, se fosse possível. Estavam receosos, aterrorizados e a espera era cruel! Esperaram, esperaram…

… até que receberam uma informação do hospital indicando que havia alguém que se tinha disponibilizado para salvar aquela vida, de forma gratuita e totalmente desinteressada. A vida é assim: pode ser um estranho a alterar tudo aquilo em que acreditamos ou não! Haviam, apenas, dois pormenores importantes a reter: um, era de carácter médico, pois a pessoa, do sexo masculino, já tinha alguma idade, o que não era impeditivo, desde que fosse saudável e compatível; o outro, era de carácter pessoal e obrigava o hospital a não revelar a sua identidade, fosse de forma pública ou, mesmo, individual, o que era ainda menos impeditivo!

Não havia nem tempo nem necessidade para perceber por que razão um desconhecido qualquer queria doar parte do seu fígado saudável a alguém que não conhecia, enfrentando perigos reais de morte… tinha sido mesmo uma sortuda! Provavelmente, essa pessoa caridosa seria alguém religioso ou, talvez, fosse alguém só, sem ninguém… mas, isso, acabava por não importar.

Depois de todos os exames e análises ao dador indicarem uma total compatibilidade, a ansiedade e o nervoso tomaram conta das suas vidas. Foi marcada a data do transplante e, depois de uma despedida banhada em lágrimas e de um tremido “Já volto!”, efectuou-se a operação.

Passara, apenas, uma semana e ali estava ela, feliz e acompanhada por quem amava.

– Ainda há pessoas boas, no mundo, Júlia! – disse a mãe, agradecida ao mundo, uma vez que não podia agradecer a mais ninguém.

– É um anjo! Só pode ser um anjo, essa pessoa! – comentou ela comovida e baixinho, como se falasse para si própria e, dito isto, os três deram as mãos, fechando em círculo uma prece e um agradecimento.

Ao fundo do corredor, num quarto afastado do movimento das entradas e saídas, um homem, de meia-idade, recobrava de uma operação melindrosa. Aos poucos, ia recuperando a consciência, percebendo os sons e saboreando a doce penumbra dos seus olhos fechados. A luz ambiente era ténue mas magoava. Tinha os pulsos amarrados à cama, para evitar que qualquer gesto incontrolado o desligasse do balão de soro. Estava sozinho, e não esperava que alguém o fosse visitar. Mas isso não o magoava. Já estava preparado e, também, habituado. Portanto, não era essa a razão pela qual chorava, nem eram as dores pela ferida aberta para o transplante, era apenas felicidade! Felicidade por sentir que tinha ajudado a fechar outra ferida que ele próprio tinha, há algum tempo, aberto. Tinha dado metade do seu fígado mas teria dado a vida, se tal tivesse sido necessário!


O primeiro livro de um escritor solitário

Acordou de forma suave, como quem reabre os olhos após os ter cerrado momentaneamente. A noite passou-se num ápice e não se recordava sequer de qualquer sonho que tivesse tido. No centro da cama, envolto na penumbra que se desanuviava à medida que o olhar rotinado se adaptava ao ambiente do quarto, sentia-se no centro do Universo, pois era assim que ele o queria imaginar: escuridão e silêncio. Propositadamente, não incluía rochas, nem movimento, nem gravidade ou a ausência dela, nem outros elementos que ele sabia existirem no espaço sideral. Era assim, exactamente, que ele queria ver as coisas, naquele momento. Saboreou aquela imagem e quase que voltava a adormecer, no torpor inebriante do prazer!…

Resoluto, saiu da cama, lavou os olhos à gato, agarrou uma peça de fruta na cozinha e dirigiu-se à sala onde habitualmente confeccionava uns textos a que, com alguma imodéstia, ele chamava contos. Gostava de pensar que assim eram, embora nunca os tenha considerado, verdadeiramente, como tal, uma vez que sempre que os relia, encontrava neles fraquezas, ausência de imagens e de figuras de estilo, estrutura frágil e vocabulário pobre, entre outros defeitos, que o impediam de acreditar poder estar a fazer o mesmo que os grandes mestres da literatura fizeram antes. Seriam, apenas, singelos e ingénuos guiões. No entanto, talvez todos os senãos que ele encontrava nos seus textos fossem, tão-somente, uma particular e pessoalíssima forma de escrever, de contar algo, a que alguém um dia pudesse chamar “estilo próprio”.

Já na sala, desviou o cortinado da janela e descerrou os estores, evitando fazer ruído que incomodasse os vizinhos que estivessem ainda na cama a saborear o inebriante prazer de se sentirem no centro do Universo. O dia entrou-lhe, bruscamente, pelos olhos dentro, de tal forma que ficou, por momentos, encadeado pela luz e levou as mãos à cara, num gesto mecânico de auto-defesa, contra um agente agressor inexistente. “Devia ter mais cuidado…” – deu por ele a murmurar e lembrou-se que, afinal, esta cena se repetia, invariavelmente. Talvez, até, houvesse alguém noutra janela, de outro prédio, que estivesse à espera que ele abrisse os estores para poder apreciar divertidamente aquela cena e, assim, começar bem o dia! Mas, este, é apenas um pensamento meu porque ele estava absorto naquilo que queria fazer naquele dia e, aquele dia, seria um dia muito importante na vida dele: já tinha compilado todos os seus contos e estava pronto a considerá-lo, também ele, um livro e, agora, só lhe restava escrever aqueles vários textos que são a água que fazem de uma obra uma simples ilha, tal como o prefácio, a introdução e o posfácio, entre outros. Não que ele achasse ser necessário qualquer deles mas porque era assim que actualmente os livros eram editados. Os grandes escritores de outrora escreviam as suas obras, elas iam ao prelo, depois de serem revistas, e saíam assim, não como ilhas mas sim como enormes continentes de qualidade: as obras bastavam por elas próprias. No entanto, noblesse oblige, nos tempos de então, talvez como técnica de marketing, ou pela falta de qualidade de quem escreve, ou pela falta de cultura de quem lê, todas as obras vêm acompanhadas de explicações às obras, de elogios aos autores, de informações diversas sobre a época envolvente, de bibliografia consultada, enfim, a obra terá que ser asfixiada, correndo sérios riscos de o leitor se sentir frustrado, no fim da sua leitura. Estava ele, então, assim, preparado para esta (quase) obrigação extra-literária.

A zona habitacional onde este candidato a escritor morava era calma, sem grandes sobressaltos sociais, onde ainda se podia ouvir os passarinhos, admirar grandes quantidades de árvores, pintar ou fotografar os montes circundantes e, até, onde existia uma ribeira perto de casa, dirigindo-se para o rio, que se dirigia para o mar. Nem o rio nem o mar se conseguia ver dali mas ele não precisava de os ver, ele conseguia recriar essas uniões e movimentos cúmplices entre estes elementos da Natureza, porque, para além de os conhecer, ele sentia-os.

Com a peça da fruta já comida e o caroço bem roído, decidiu sentar-se no sofá em frente à janela de onde se podia admirar uma paisagem tranquila e quase campestre. Pegou no pouco material necessário, papel e caneta, e começou a ordenar ideias. Ocorreu-lhe que poderia utilizar o computador e, dessa forma, poupar trabalho, mas gostava de escorrer as palavras em tinta e de sentir o papel ser depositário dos hieróglifos quase indecifráveis que as representavam. Para além disso, sentia-se mais familiarizado com a escrita humanizada e tradicional, sentia-se mais perto dos escritores antigos, os tais cujas obras eram continentes e, a dele, uma ilhota perdida num oceano de anexos. Solitário, como a sua obra, deu início ao trabalho.

Começou pelo Título e, este, já ele o tinha idealizado que seria algo como “Contos (ir)reais”. Estava agora dependente do editor que, assim estava esperançado, haveria de ter. Brevemente… esperava ele. Contos (ir)reais, porquê? Ora, porque lhe era evidente que eram contos, pois pretendia contar uma história numa narrativa breve, através da escrita; (ir)reais, porque eram contos que tentavam mostrar algumas realidades que, de tão longe do imaginário quotidiano dos simples e comuns cidadãos, se pudessem aferir como irreais. Era exactamente este impulso que ele pretendia causar nos possíveis futuros leitores. Poder-se-ia, também, chamar “Metáforas do quotidiano” ou algo dentro deste sentido. Gostava, mesmo muito, de escrever este tipo de histórias sendo incapaz de escrever outro tipo de contos, fossem eles histórias-da-carochinha ou contos-do-vigário ou, até, contos-de-fadas. Nenhum destes encaixava em si e ele pretendia alertar as pessoas para situações de todos e não só de alguns. No fundo, achava que não iria ter qualquer êxito com a sua obra, pois a fantasia é quase sempre preferida em detrimento da realidade; a infelicidade, presente em muitos dos seus textos, não traz o oposto… teria que repensar a próxima obra.

Depois, apareceria na dobra interior da capa protectora o relato das suas actividades. Este texto, que teria que ser breve e explícito, sem grandes delongas, passaria em cru tudo aquilo que ele tivesse obtido, em termos académicos e ou profissionais. Quem ele era, que cargos actualmente exercia e em que projectos participara. Não passava de alimentar as razões que levariam alguém a decidir-se comprar e ler o livro. Seria, por isso, uma mensagem quase subliminar, que era passada ao potencial interessado pela obra e que lhe diria: “este homem é sólido, tem capacidades excelentes, é credível e competente; comprar este livro, só vem aumentar o teu património cultural e, quem sabe, um dia, também o património de valores de mercado, se ele chegar a Prémio Nobel! Por isso, de que é que estás à espera?! Compra!!!”

Claro que, aqui, ele tinha muito pouco a preencher: não tinha participado em projectos socioculturais de nomeada, não era conhecido publicamente, não exercia funções relevantes aos olhos da crítica, afinal de contas, como homem solitário que era, apenas tinha nome e aquele livro para editar. Secretamente, ele esperava que ninguém se fosse dar ao trabalho de devorar, folha a folha, nenhum daqueles anexos… pelo menos, antes de comprar o livro.

Depois do Índice, que apareceria informaticamente, iria ter de aparecer o malfadado Prefácio. Nesta secção, alguém que não ele, teria que pré-apresentar, de forma breve e sucinta, a obra: como ela era mostrada, a estrutura, o conteúdo e a mensagem que o autor (ele, claro!) queria transmitir, a suas razões e o seu pretexto (puro marketing!) para a escrever. O prefácio é, assim, algo como um folheto publicitário de um centro comercial indicando aquilo que o vendedor quer que o comprador ache que precisa mais. Claro que tudo isto estará muito bem estudado e ninguém se surpreenderia se houvesse já minutas preparadas para cada tipo de prefácio. O seu problema maior não era o prefácio, em si, mas a dificuldade que ele tinha em encontrar alguém, publicamente conhecido, disposto a compor-lhe um texto que o colocasse nos píncaros das virtudes e qualidades e lhe enaltecesse a obra. Dificuldades, porque a obra era a primeira e ele era desconhecido, para aquele mercado e socialmente, também, mesmo entre os próprios vizinhos, tinha disto consciência! Teria que recorrer a algum amigo em especial que estivesse na disposição de lhe fazer o favor mas, como não tinha amigos e, muito menos, especiais faria ele mesmo o prefácio e inventaria um nome desconhecido composto por partes de outros conhecidos. Talvez, Pedro Sócrates ou Aimar Carreira. Depois, se veria.

Após ter escrito o Título, os cargos que devia desempenhar e os que era suposto ter desempenhado, e o Prefácio, sentiu-se mais cansado do que após ter escrito qualquer daqueles contos. Já tinha entrado na (ir)realidade e na invenção, ou desenrascanço, mais vezes e impudicamente do que em toda a sua obra! Havia, até, mais fantasia do que ele gostava mas auto-desculpava-se com as técnicas de venda, com as exigências do mercado e… bem, com ele próprio, também, e mais o seu eremitismo social voluntário. Não havia nada a fazer, agora. Ia descansar. Recostou-se no sofá e cerrou os olhos. Precisava de algum alento e iria em sua demanda interiormente. Seria por pouco tempo…

Acordou de forma suave, como quem reabre os olhos após os ter cerrado momentaneamente. Olhou para o relógio e sobressaltou-se: tinha passado uma hora, ainda havia muito por fazer e não tinha ganho alento suficiente para o que aí vinha. Iria saltar a secção seguinte e passar, directamente, para a Introdução. No fim de tudo, iria compor as palavras mais difíceis. Agora, não tinha nem coragem nem arte para o fazer.

Então, a Introdução aparece a seguir e é tida como o texto explicativo que antecede uma obra escrita e há autores que a consideram sinónimo de Prefácio. Bom, aqui não havia muito a inventar: apenas se escreveria o mesmo, ou quase, que se tinha escrito no prefácio, estando a diferença substancial na sintaxe, mais precisamente no sujeito das frases, que passaria da terceira pessoa para a primeira. Ou seja, prefácio e introdução acabavam por ser a mesma coisa, só que o primeiro era escrito por alguém reconhecido publicamente, considerado idóneo e que, com as suas palavras, colocava um selo de garantia na obra e no autor, enquanto que a introdução seria escrita pelo próprio obreiro. Por aqui se pode ver a necessidade de se dobrar o mesmo texto: se não houver Prefácio, pode ser sinal de que a obra nada valha, ou de que a obra é um clássico mundial e não precisa de favores destes ou, como era o seu caso, indicar que o autor não conhecia ninguém que se quisesse comprometer, com a sua opinião, perante o juízo público, por alguém que poderia não vir a ser um best-seller… Portanto, esta secção foi simples de preencher e a mais identificada com a obra. Era como escrever uma composição na escola: introdução, desenvolvimento e conclusão.

Como o desenvolvimento, a obra, estava já redigido, partiu o autor para a conclusão, ou seja, o Posfácio, que terá de ser um texto breve, no fim da obra, escrito por alguém, que não o próprio autor, ou por este, e que serve para tecer considerações finais sobre o que se acabou de escrever. Nesta secção, ele começou por relacionar os contos que escrevera com a vida de muitas pessoas, mesmo aquelas que achavam não se identificar com os seus personagens. Alertava, assim, para o objectivo principal das suas palavras: o que deixava escrito podia estar ou vir a estar interligado com o seu leitor; portanto, aquela mensagem podia ser um aviso, um apelo à consciência para que se deixasse de pensar que os acontecimentos maus só acontecem aos outros! Acrescentava: ”Nós, como leitores que todos somos, podemos ser aqueles intervenientes e, muitas vezes, se quisermos encarar a realidade das nossas vidas, somos mesmo os personagens principais das histórias que nunca nos acontecem!”

Já na Introdução, ele tentara mostrar o real significado dos seus contos e a forma de leitura que achava correcta a seguir pelo leitor, mas aproveitou a existência do posfácio para acentuar as suas convicções, embora a sua fé de que houvesse muita gente a ler estas palavras, fosse muito fraca.

Um pouco desalentado com estes últimos pensamentos, deixou em branco a Bibliografia, uma vez que nada tinha consultado e tudo se lhe aflorara como água correndo de um rio que não via mas que sabia existir, em direcção ao mar, e partiu para o mais difícil dos anexos: os Agradecimentos!

Um autor que esqueça agradecer a quem o apoiou, a quem lhe desculpou a pouca atenção prestada ao longo da obra, pela obra, que esqueça as pessoas que lhe serviram de modelo e aquelas a quem pretende servir de padrão, é um autor ingrato e injusto. Ou, então, é um autor solitário que não tem ninguém a quem agradecer porque remeteu todos para a periferia mais distante da sua vida, e não há ninguém para partilhar os seus planos, as suas alegrias e os seus momentos de angústia. E o leitor pode ser sensível a isto tudo… ou não! Naquele momento, estava indiferente ao leitor e olhava o papel, que serviria para aquele anexo, vazio, sem vida e, pior, sem esperança de o ver escrito. Entristecera…

Deixara para o fim este capítulo e, agora, que procurava palavras para o escrever, não conseguia sequer começar. Escrevera tantos contos, onde a solidão vagueava de ser em ser, alertara o futuro leitor para se identificar com muitas das palavras que escrevera e, afinal, era ele a primeira vítima daquilo que queria que os outros vissem nos outros: ele era um dos outros! Estava só, era indiferente aos outros, que lhe devolviam os sentimentos, não havia gratidão a retribuir nem iniciativa para dar e a infelicidade entranhava-se pelas paredes da casa e instalava-se como sua companheira…

Afinal para que serviriam aqueles contos de realidades vizinhas a si se ele não tinha ninguém com quem saborear a alegria de saber que os outros tinham entendido as suas mensagens? Escrevera tanto e com tanto entusiasmo, acreditando que pintara uma tela de parte da vida de muitas pessoas e não reparara que o conto que não escrevera o tinha, a ele, como protagonista…

A quem iria agradecer? Nenhum familiar tinha ficado sem a sua atenção devido à obra, pois era normal não a terem; nenhum amigo o apoiou pois a nenhum amigo ele deu o prazer de se sentir importante na sua vida ao dar-lhe os seus pareceres e críticas. Não havia ninguém! Talvez, apenas, o editor, se viesse a existir algum…

A primeira obra daquele escritor solitário iria ficar incompleta, como um puzzle em que lhe falta uma peça. Uma peça-chave! Talvez os leitores não reparassem, talvez o editor não exigisse mas ele ficou a saber que a sua obra estava vazia, sem alma, sem vida. Talvez venha a ser um best-seller, mas ele nunca será feliz totalmente. Com quem vai ele partilhar?…

Decidido a não se deixar vencer, só havia, agora, uma forma de sarar aquela ferida: iria escrever o conto que faltava naquela obra, aquele em que o protagonista seria ele mesmo, para que, quando lesse a sua obra já editada, sendo um leitor como outro qualquer, revisse a vida do personagem na sua vida e tomasse consciência dos seus erros e dos actos que os originaram! O título do seu conto também já o sabia e seria “O primeiro livro de um escritor solitário”. E começou a escrever:

“Acordou de forma suave, como quem reabre os olhos após os ter cerrado momentaneamente…”


O pastor e o Lobo (recontado)

Como sinal dos tempos modernos, a povoação onde se passa esta história estava, há algum tempo, livre de lobos; isto é, havia apenas um: o António Lobo, que era um lavrador oriundo de famílias historicamente abastadas mas que, para além de não ter herdeiros, também já não tinha herança a distribuir. Ligeiramente afastado do povoado mais próximo, vivia isolado e sem família num casarão grande demais para a sua solidão e tinha, como rendeiro, um homem que já trabalhara para os seus pais e que tinha conhecido um desafogo que não era visível, por estes tempos.

De índole irascível, algo desrespeitador e prepotente, Lobo sabia que o rendeiro não tinha mais sítio para onde ir e que nem ao povoado se deslocava, por motivos de doença. Era exigente a roçar o crápula violento e, para além disto, queria manter o nível de vida que tinha tido antes, após o desaparecimento dos pais. Deslocava-se, cada vez menos, também ele, ao povoado mas ainda ia algumas vezes, por mês, ao fim do dia, à cidade, no caminho oposto, de onde regressava noite dentro, perdido de embriaguez.

O rendeiro, ao contrário do lavrador, não vivia só; tinha com ele o filho mais novo, que lhe era muito apegado e que tinha feito acto de fé e promessas a S. Domingos de Silos, padroeiro dos pastores, da qual era devoto, que não abandonaria o pai e o ajudaria naquilo que ele precisasse. Este filho, Pedro de seu nome, tinha sido criado e educado apenas pelo pai, pois a mãe tinha falecido no acto de dar à luz, como imensas outras mulheres naquele tempo, por falta de condições sanitárias e pela ausência de alguém que soubesse mais do que a “parteira” da terra.

Pedro nasceu, e foi educado, tendo sempre presente a verdade como base para a felicidade. O pai era religioso e devoto praticante e mais ficara após ter perdido a companheira, embora tivesse deixado de assistir regularmente ao santo ofício dominical, devido a insuficiência respiratória que se agudizara com o correr dos anos. A vida nunca fora fácil mas os patrões, pais de António Lobo, sempre o apoiaram, suavizando-lhe a vida. Com a morte dos patrões, morreu, também, a esperança de conseguir um futuro melhor para o seu filho Pedro, tal como conseguira para os outros dois, que já tinham a vida arrumadinha e viviam bem longe, nos arredores de Paris, desde há muito tempo. Assim como há muito tempo já não sabiam notícias deles…

No povoado, toda a gente conhecia a Família Lobo, tal como conheciam os seus rendeiros. Sabiam que os abastados lavradores eram gente séria e honrada e que os rendeiros eram gente boa e devota a Deus: era uma dádiva dos céus, Deus ter juntado aquelas duas famílias. Com o correr dos tempos, tinham perdido o contacto com todos eles e não faziam a mínima ideia do tipo de gente em que os filhos se tinham tornado; no entanto, só podiam ser boas pessoas, também, porque eram filhos de quem eram!

Certo dia, porém, chegou ao largo do povoado um rapaz forte e com mãos de trabalho, trazendo consigo um cajado, que se dizia filho do rendeiro da Família Lobo, chamando-se Pedro. As pessoas mais antigas logo associaram parecenças e reconheceram nele, de facto, o miúdo franzino e calado que antigamente costumavam ver, na igreja, na missa dominical, pela mão do pai apenas, porque a mãe já Deus tinha em descanso! O rapaz tremia enquanto contava que o patrão, delirante, tinha perseguido bêbedo, o seu pai pelos campos, com uma forquilha na mão, ameaçando matá-lo, enquanto ele, Pedro, estivera nos montes com as ovelhas! E o rapaz ia falando, atabalhoadamente, em soluços e sem parar…

As pessoas da povoação, chamadas pelas outras ou apercebendo-se de que se estava a passar algo anormal, iam-se chegando ao largo e formando uma volta à volta do rapaz! Havia ali qualquer coisa que não estava bem, para eles. Os mais velhos tinham conhecido muito bem aquela família honrada que tinha sempre apoiado os seus rendeiros e estava a ser difícil ouvir e acreditar naquelas palavras. É certo que os rendeiros sempre tinham sido trabalhadores e leais mas não queriam acreditar nas palavras que jorravam da boca do pastor.

Foi assim que fora decidido que o Presidente da Junta iria, na manhã do dia seguinte, uma vez que o Sol já estava a desaparecer por detrás dos montes, a casa do Lobo, inteirar-se do sucedido. Com certeza que haveria uma explicação diferente e mais de acordo com aquilo que conheciam deles.

Pedro, vendo que não acreditavam nele e não obtivera, assim, qualquer ajuda, partiu apressadamente de regresso a casa, antes que a coisa piorasse para o pai e ele sem o poder ajudar.

Tal como combinado, no dia seguinte, lá estava o Presidente da Junta em casa dos Lobos que, agora, era um apenas. Este mostrou-se surpreendido pelo relato e jurou a pés juntos, pelo santo padroeiro da povoação, que jamais tinha feito ou faria tal coisa! Este era, aliás, um tremendo acto de ingratidão!!! Postas as coisas nestes termos, no seu devido lugar, regressou o credível Presidente da Junta ao largo da povoação e contou a conversa tida com o António Lobo. Os habitantes ouviram e chegaram à conclusão que tinham feito bem em não acreditar em Pedro, o pastor, acerca de Lobo, o patrão! E regressaram aos seus labores, recriminando o rapaz: parecia-lhes impossível, o mentiroso em que se tornara aquele fedelho!

Dois dias passaram sem que nada de novo se passasse no povoado e as pessoas já estavam prontas a esquecer o sucedido quando irrompe pelo povoado, vindo dos lados do casarão do Lobo, novamente Pedro, o pastor, em autêntico alvoroço, sufocante, gritando, pedindo socorro pelo seu pai que estava a ser alvo dos tiros de uma espingarda, usada para a caça, que o Lobo guardava em casa. Mesmo desconfiando, lá se foram reunindo no largo, agora ainda mais pessoas devido à gritaria do rapaz, com cara de poucos amigos!

Não! Não era possível que aquilo fosse verdade! Já tinha ficado provado que aquilo que ele contava era mentira, era imaginação a mais do rapaz e que, a continuar assim, ninguém acreditaria nele! Para além do mais, a mãezinha dele, lá no Céu não estaria nada contente com ele e certamente iria ser castigado pelo divino. Teria que pedir perdão a Deus, pelas mentiras todas e penitenciar-se com 30 Avé-Marias e 30 Padre-Nossos! Como naquele dia estava na terra o sacerdote, que tão bem conhecera a sua mãe, predispôs-se a ser ele próprio, desta vez e pela última vez, a ir falar com o Lobo! O sacerdote falou e a restante população disse amém, após uma breve ladainha.

Pôs-se a caminho com o rapaz e, enquanto não chegavam a casa, foi pregando sermões atrás de sermões de tal forma que Pedro abençoou a hora em que entraram nas terras do Lobo e, lá chegando, desapareceu em busca do pai, que se escondera no arvoredo próximo da casa.

António Lobo estava em casa, recostado numa cadeira de baloiço que já tivera melhores dias, e mostrando-se surpreso, beijou a mão do padre reverenciosamente. Após este breve ritual e depois de se acomodar confortavelmente, o sacerdote expôs os receios da população, realçando que era sua opinião que o rapazola estava numa fase má e que ninguém acreditava na sua palavra. Aconselhava, por obra misericordiosa, que chamasse Pedro e falasse com ele a bem e o aconselhasse a ter mais juízo e a não ser mentiroso! Após o discurso não interrompido, António Lobo despediu-se da mesma forma com que tinha recebido o padre, prometendo cumprir aquilo que lhe fora aconselhado por este.

Assim que o sacerdote deixou de se avistar, Lobo foi procurar Pedro na casa do rendeiro e com um sorriso velhaco contou-lhe uma história tradicional que ele, provavelmente, nunca ouvira: a história do pastor e do lobo. Não, o lobo da história não era ele mas o pastor podia ser o Pedro que, desta forma tinha que perceber que ninguém no povoado iria acreditar mais nele! A verdade, essa, teria que ficar sempre dentro daquela casa…

Pedro ouvira a história, entre a revolta e o nojo, mas havia qualquer coisa nela que lhe agradara: havia uma forma de o Lobo ser castigado! Assim, teria que virar a história ao contrário: se ninguém acredita nas verdades, então é muito possível que acreditem melhor numa mentira! Passou alguns dias a imaginar possíveis armadilhas mas tinha pouco jeito para tal, nunca mentira e não se sentia muito bem naquele papel; no entanto, sabia que tinha que conseguir, para salvação do pai e para ver castigado o único Lobo da aldeia!

Uma semana depois, entrou calmamente no povoado e dirigiu-se para o largo. Sentou-se junto à fonte, onde se encontravam algumas mulheres e alguns namoricos, e esperou…

As pessoas viram-no chegar e ficaram curiosas. Foram-se acercando dele e, mortas de curiosidade, como ele nada dissesse, começaram a perguntar-lhe se estava tudo bem, se tinha notícias dos irmãos, ou do pai, ou do patrão… sim, do patrão ele tinha, mas certamente ninguém iria creditar nele se dissesse que o Lobo ia vários dias por mês à cidade encontrar-se com a filha do Presidente da Junta, que trabalhava à noite, numa casa onde serviam vinho e outras coisas, segundo o patrão contava entre o delírio da bebedeira e o sono ruidoso. E continuava a falar, de um modo aparentemente despreocupado… até surgir o próprio Presidente que o afastou do centro das atenções, com o pretexto de ter assuntos pessoais a tratar com ele. E tinha mesmo…

Naquele mesmo dia, quero dizer, naquela mesma noite, um punhado de homens de confiança do Presidente, entrou no casarão do Lobo e desancou-o sem este ter tempo para dizer o que fosse! Depois de terem despejado a única garrafa de brandy presente na garrafeira e de terem, cada um deles, confirmado que tinham terminado o servicinho encomendado, voltaram pelo mesmo caminho para as suas casas honradas e honestas de pessoas de bem!

Os dias seguintes foram dias difíceis para o Lobo, que aprendera uma grande lição e Pedro, o pastor, não se sentia feliz pela mentira mas tinha concluído que quem não quer ser lobo não lhe veste a pele!

Deixara, assim, de ser perigoso o único lobo da povoação!


O homem que acertava em tudo o que previa

Desde tenra idade se notou que aquela pessoa não seria como as outras. Não era comum, tinha qualquer coisa com ela que os outros não tinham capacidade para perceber: estava tudo muito além dos parcos e rudimentares conhecimentos dos restantes habitantes daquele lugar perdido no sopé de uma montanha que se dizia ser, também ela, misteriosa…

Tinham passado, de geração em geração, histórias tão assombrosas e, algumas, tão assombradas que arrepiavam de temor os mais novos, quando as ouviam contadas pelos idosos do lugarejo e não deixavam indiferentes todos os outros: os adultos que ouviam e, mesmo, os que as contavam.

Até aos nossos dias e por aquilo que corria de boca em boca, apenas um ser vivo não se tinha mostrado intimidado, nem com as histórias, nem com os velhos que as contavam, entre as sombras em movimento, provocadas pelas labaredas das fogueiras, nem pela própria montanha, em si! Apenas aquele homem convivia bem com o medo dos outros sem o reconhecer como seu, também.

Para além do aparente desassombramento com que o indivíduo vivia, ele ainda contava com um trunfo que era de qualidade superior à falta de medo: ele tinha poderes divinatórios! Ele conseguia prever determinadas ocorrências da vidas das pessoas e, muito melhor!, ele acertava em todas as previsões que fazia! Ninguém sabia explicar como e, desta forma, os poucos habitantes daquele lugar perdido no sopé daquela montanha misteriosa admiravam-no tanto como o temiam: nenhum ser humano, nascido de ser humano, filho de Deus, podia saber o que ele sabia, antes de alguém o poder saber!

Dizia-se que este homem fizera um pacto com o Demónio, que seria ele o próprio Anjo Negro, que tinha capacidades sobre-humanas ou, até, que nem era homem ou animal! Nos confins da serra, no silêncio do arvoredo, nas luzes escuras das casas sem luz, nas mentes pouco cultas dos outros homens e mulheres do lugar, não havia espaço para diferenças tão grandes entre seres da mesma espécie: aquele era algo ou alguém que já tinha estado onde e quando antes nunca ninguém tinha estado! Assustava e ele sabia (também isto ele sabia, claro!)…

No entanto, nos murmúrios das conversas longínquas, entre um rebanho de ovelhas e um penedo protector (não fosse o Diabo tecê-las!), com palavras mastigadas à mistura com o pão duro do farnel, havia quem achasse que ele apenas tinha bons ouvidos e bons olhos e todo o tempo do mundo para observar, ouvir e depois concluir. Também era amigo do sacristão que apoiava o padre nas missas da localidade mais próxima, a cerca de cinco quilómetros dali, e que a partir deste conseguia saber a vida dos outros…enfim, invejas!

Dizia-se muita coisa mas sabia-se muito pouco. Aliás, quem parecia que sabia mesmo era só ele! Ele que não era versado (que se soubesse, ao certo) em nada; que tinha concluído a terceira classe com subaproveitamento e tarde; que nunca tinha aprendido nada dos campos ou dos animais, defendido pelas suas outras qualidades; que tinha casado com uma das moçoilas mais abastadas da terra, por sugestão do próprio pai materno, seguindo os conselhos sempre sábios do pároco da região. Ele, apesar disto ou por isto tudo, era a figura central da terra, a incontornável sombra projectada no interior das casas dos outros, a omnipresente e omnisciente imagem nos olhos e espíritos crédulos daquele crente grupo humano.

Havia quem dissesse, decerto com maldade e maliciosamente, entre dentes e em círculos fechados, em conversas tão secretas que ninguém poderia contar o que ouvira, que toda aquela imagem era intencional e montada ardilosamente para convencer e atemorizar as pessoas e, assim, colher proveitos que nunca existiriam de outra forma! Más-línguas…

No entanto, sempre que alguém precisava de conselho ou previsão futura de algo dirigia-se a ele. Ele ouvia, ouvia, semicerrava os olhos, como que em êxtase, e continuava calado durante algum tempo. Os interlocutores, nunca pensariam em quebrar aquele momento a que só os animais, a passar a caminho das forragens, parecia não incomodar nem dar nenhuma importância. Depois, as pessoas iam para casa e, mais tarde, lá voltariam para ouvir o que ele tinha para dizer. Por aqueles lados, o tempo é medido pela luz do dia e pelo trajecto da Lua no céu: há muito tempo para ter tempo e, por isso, respeitavam aquele ritual. Nem sempre havia resposta, nem sempre ele previa, parecendo dizer que nem sempre ele tinha estado onde os outros ainda não tinham ido. E quando tal acontecia, quando nada havia para dizer, nunca havia a menor intenção de discordar com a não-previsão; se assim era, era porque assim devia ser! Quando havia previsão, fossem imagens negativas, fossem cenários idílicos, toda aquela gente ficava com a certeza que seria assim que as coisas iriam acontecer: como se já tivessem acontecido e eles fossem os únicos a não saber!

O que ele fazia e como fazia, uma vez mais, ninguém sabia. Uns diziam que ele deitava farinha na água e interpretava os resultados, ou que a adivinhação era feita por um galo, colocando grãos sobre letras e o galo “soletrava” depois a mensagem ao debicar os grãos, ou que a observação de árvores derrubadas e a orientação dos seus troncos o ajudava. Havia quem dissesse que ele “deitava” as cartas, ou que ele interpretava os movimentos de uma chave suspensa por um fio sobre uma Bíblia, ou que usava um ramo de loureiro e estudava a forma como rachava quando queimado. Certas velhas diziam que a adivinhação era efectuada por exame do que certas coisas fazem quando lançadas ou tiradas da água, tal como folhas de chá, ou que interpretava os movimentos da chama de uma lamparina a petróleo, ou que comunicava com os espíritos dos mortos para predizer o futuro. Os mais cultos achavam que ele interpretava o voo dos animais, ou que fazia a predição pelo vinho ou através de uma cabeça de burro. Apesar destas ideias, a mulher dele achava que nada disto podia ser verdade, uma vez que ele se deitava antes dela e se levantava com o Sol a aquecer-lhe as mantas da cama, através das cortinas da janela, já ela se levantara havia muito tempo.

Fosse qual fosse o método, se é que havia método, e excluindo os mexericos invejosos de alguns, pouquíssimos, claro, sempre que ele predizia ele acertava. É certo que poucas vezes se estava disposto a fazê-lo mas isto nada retirava ao êxito das previsões.

Certa noite, depois de avidamente ter devorado o repasto caseiro e bebido a preceito um vinhito que lhe fora oferecido pelo dono da taberna, como paga por ele lhe ter avisado que a sua filha iria ter um rebento lá para o fim do ano e, até, lhe ter previsto quem era o pai da criança, sem que o taberneiro sonhasse sequer que a filha saía de casa às escondidas e se encontrava com o filho do dono da vinha que o fornecia, certa noite aquele homem que acertava em tudo o que previa, depois de arrotar, como indicação da boa qualidade da comida, disse para a mulher e os dois filhos:

– “Vou desaparecer!”

Assim, sem mais nem menos! Nunca ele antes tinha previsto nada em família! A mulher achou que o vinho estava alterado pelo taberneiro que pretenderia, assim, enlouquecer o seu homem, para que ele não adivinhasse as voltas trocadas que dava em direcção à cabana do lenhador, onde a mulher deste passava imenso tempo sozinha. Por seu lado, os filhos, cientes das capacidades do pai, abriram desmesuradamente os olhos e não mais desviaram o olhar dele, a fim de poderem observar todo o processo de desaparecimento: se o pai dizia que ia desaparecer, é porque ia mesmo!

Ninguém disse nada; apenas olhavam e esperavam. Passado algum tempo, como o homem nem desaparecia nem se levantava, antes pousara a cabeça em cima da mesa, roncando sabiamente, os filhos foram contra vontade para a cama e a mulher levantou a loiça da mesa, lavou-a, arrumou a cozinha e ausentou-se para perto da lareira, onde tinha alguma luz e a roupa à espera de ser cozida. Depois, foi para a enxerga que lhes fazia companhia e que fora oferecida, depois de muito bem empalhada, pelo dono de umas terras ali perto.

No dia seguinte, ao levantar-se, a mulher reparou que o lado da cama do seu homem estava como se não tivesse sido usado e pensou que ele tivesse passado a noite na cozinha, junto às brasas. Como não encontrou o marido na cozinha, achou que ele já tivesse ido dar as voltas dele pelos campos para observar tudo e todos, o que não era habitual para aquela hora mas que devia ser entendido como alguma urgência de última hora, para resolver os problemas de alguém!…

Depois de levantar os miúdos, entregar-lhes a merenda e correr com eles para a escola, ainda o Sol não tinha acordado, deu uma volta à lida da casa e não reparou que havia uma trouxa de roupa lavada, pronta a ser usada, junta ao baú oferecido por alturas do casamento, como dote. Deitou uma última olhadela à casa e não pensando em mais nada, como o Sol já se mostrava um pouco acima da linha do vale, na direcção da aldeia mais próxima, lá pegou ela num molhe de roupa suja e dirigiu-se para a ribeira de águas tão claras como gélidas, onde se encontraria com as amigas dos costume e, para além de lavarem a roupa, também lavariam a vida dos outros…

Entre o chilrear dos passarinhos e o sopro do ventinho cortante que vinha da montanha, ela deu as saudações às outras que tinham chegado antes dela e reparou que, daquela vez, lá haviam mais do que normalmente. Seria uma boa oportunidade para recolher mais informações para contar ao marido que acertava em tudo o que previa. Não conseguia perceber como mas achava que o ajudava.

Para seu espanto, as mulheres presentes responderam como que envergonhadas e olhavam-na com um misto de escândalo, surpresa e compaixão… havia algo que não estava bem! Ela que nunca tinha acertado, nem previsto nada, antes, sentia que estava alguma coisa no ar e começou a achar que também ela conseguia ter alguns dos poderes do marido. E deitou-se a adivinhar.

Para sua desilusão, nenhuma das presentes lhe respondia nada de especial: estava tudo bem com elas e com as respectivas famílias, o tempo estava esquisito, a água estava muito fria, a roupa não secava, os animais pareciam cansados, enfim, um chorrilho de desculpas esfarrapadas! Mas, ela sabia que havia mais qualquer coisa! Ela sabia e via nas outras bastante vontade em falar; por isso, lembrando-se daquilo que o marido fazia, calou-se. E resultou!

Antes não se tivesse calado! Umas vezes, fala-se demais; outras, mais vale continuar a falar… então, ela não sabia que o lenhador, cuja mulher passava muito tempo sozinha na casa isolada da montanha, tinha voltado, de repente, sem que ninguém esperasse? E que tinha visto uma sombra fugidia a escapar-se em direcção ao casario? E que tinha entrado, de rompante, em casa e tinha apanhado a mulher em trajes e posição pouco religiosas no meio dos lençóis revoltados e espalhados no quarto? E que o lenhador, depois de uma sova quase até à morte na mulher, se tinha posto a caminho da taberna, onde encontrou a mulher do taberneiro, por quem em tempos tinha tido uma paixoneta e mais alguma coisa, mas que tinha sido obrigada a casar-se com o vinho, isto é, com o dono da taberna? E que a ex-paixão, após meia dúzia de malgas de vinho, e algum conforto, sempre com um olho no lenhador e outro na entrada da tasca, lhe tinha indicado o caminho da casa da sombra fugidia? E que a casa da sombra fugidia era… a dela mesma?!!! E que se dizia, à boca cheia, que o lenhador ia matar o seu marido!

Aí, ela entendeu! Largou a roupa envergonhada e suja e saiu a correr, para chegar antes do lenhador. Para evitar que o lenhador o matasse, para poder ser ela a matar o marido ou para… encontrar a casa vazia!

As roupas estavam desarrumadas, o pote onde aforravam algum dinheirito estava vazio, a caçadeira já lá não estava, a broa e os chouriços também não e o marido… tinha desaparecido!

Tal como ele previra, em família, desaparecera. Uma vez mais se confirmou que aquele homem acertava em tudo o que previa!

Ainda hoje, esta e outras histórias que, entretanto, cresceram em fantasia, são contadas ao anoitecer, enriquecidas pelas sombras das labaredas, pelas gentes mais velhas daquele lugar, onde cada vez mais são menos, junto ao sopé de uma montanha que se diz misteriosa… ainda hoje, não se sabe o que realmente aconteceu, se é que aconteceu realmente!


O bibelot

Aquela era uma pessoa com muito bom gosto, com muita classe.

Tinha uma distinta forma de parecer e de estar na vida. Era sofisticada, genuinamente polida, bem-parecida e requintada, nas diversas vertentes e perspectivas pela qual pudesse ser apreciada.

Sabia escolher as palavras certas nos momentos certos; sorria simpatia, como quem respira naturalmente; escolhia as roupas com cuidado e adequadamente, ligando estilos, acessórios, odores e cores, de forma tão simples que resultava, infalivelmente, na perfeição; rodeava-se de amigos que a adoravam e lhe reconheciam qualidades únicas; tratava de si própria sóbria e sabiamente; enfim, apreciava e era apreciada pela elegância, boa-educação, bonita aparência e pela facilidade em ter e manter amigos que cresciam em espiral, à medida que a conheciam melhor!

Para além destas refinadas características de bem saber viver em sociedade e consigo própria, aquela pessoa primava pelas escolhas mais finas e, logo, mais caras dos objectos que usava, em si ou para si. Claro que pode dizer-se que, por serem escolhas com muita qualidade, deixaria de se ter muito em conta o preço, porque o seu valor era inestimável e garantidamente de confiança. Tudo o que tinha encaixava nos padrões que era suposto encaixar, pois ligava perfeitamente com a pessoa e o seu mundo.

Com as certezas próprias de quem tem tudo controlado e é feliz ou, quem sabe, se num momento de fraqueza imprópria dela, certa vez adquiriu uma estatueta que lhe chamou a atenção, numa montra de uma loja daquelas para as quais ela nunca, antes, tivera o hábito de olhar. Aquele era um bibelô que ficaria muito bem na sua decoração, embora ainda não se tivesse apercebido muito bem por que razão o adquirira… olhava para ele e não encontrava nada de especial: era um objecto comum demais para ser classificado como de qualidade e não se identificava com os parâmetros ideais a que se habituara e a que tinha habituado os amigos e familiares mais próximos!

Estes amigos e familiares não deixaram de notar uma alteração tão substancial nas suas opções e deram-lhe a entender, de forma educada, claro, que aquele objecto não era o indicado para ela, que não tinha qualidade, que não possuía beleza digna dela, que faria forçosamente uma péssima decoração; que, que e mais ques…

No entanto, as pessoas que faziam parte do seu universo, embora soubessem dos pormenores no tocante a preferências e opções, quanto a (pensavam eles!…) quase tudo, desconheciam algumas particularidades do seu carácter e personalidade. Assim, não imaginavam, sequer, que quanto mais eles lhe dissessem para se desfazer daquele objecto, tão pouco valioso como quase horrendo, mais aquela pessoa lhes não fazia a vontade! Por que razão haveria de se livrar do bibelô se fora uma escolha sua?! É certo que ainda não entendera bem a razão daquilo que fizera mas achava que não teria que haver uma razão imediatamente visível e detectável tão facilmente, para ela e para os outros!

E, assim, para desencanto dos amigos e familiares mais próximos, que não se reviam na escolha da estatueta disforme, por obstinação e sem pensar muito noutros porquês, aquela pessoa colocou o bibelô, bem visível, no móvel mais bonito, na sala melhor decorada da sua, até aí, bem linda casa! Assim que lá o colocou, percebeu, logo, que tinha deixado de haver a harmonia graciosa na paisagem deliciosa daquelas paredes. “Aquilo” contrastava, de forma chocante, com tudo o resto mas seria essa mesma oposição entre conceitos de beleza que a iriam fazer seguir os seus propósitos! O contraste também fica bem… e ali ficou a estatueta, exposta aos olhares desagradados dos visitantes, durante algum tempo.

Segundo parece, tudo na vida tem o seu tempo próprio de existência e a obstinação inicial começou a resultar em alguma frustração: de facto, o bibelô, ali já não se adequava tão bem como inicialmente. Podia ser que houvesse alguma razão, por parte dos conhecidos e familiares. Mas não queria desfazer-se dele. Afinal, ele representava uma tomada de decisão em sentido contrário ao que dela se esperava, representava um certo sabor a vitória! Por vezes, até lhe parecia ser feliz, quando olhava para o bibelô, quando lhe tocava, quando lhe limpava o pó, quando tentava encontrar algo de belo nas suas formas toscas. Talvez, se o mudasse para outro móvel…

Depois da primeira mudança, seguiu-se outra, e outra, e outra… até que aquela estatueta barata e de duvidosa qualidade acabou por ficar em cima de um armário bem alto, lá para os fundos, no canto mais distante da sala menos usada da casa.

O tempo foi passando e, com ele, novas alegrias chegaram, novos planos se idealizaram e novas formas de vida se abriram aos olhos daquela pessoa que, um dia, tivera a ilusão de ter sido feliz por ter adquirido algo que mais ninguém iria querer! Algo de muito pouca qualidade e sem grande valor… com tão pouco valor que deixara de ser objecto de lembrança de quem quer que fosse!

O tempo foi passando e porque, de facto, o material com o qual aquele objecto era feito era de baixa qualidade, o bibelô que já não o era, e que ninguém dele se lembrava, agora, começou a deteriorar-se, atacado pela humidade e pelos insectos e desfez-se. Estava, somente, à espera da limpeza geral à casa para voltar ao lugar a que pertencia: ao caixote do lixo!


A Praia das Sombras Luminosas

Verão! Dia de canícula! Férias! Família! Praia!

Havia imenso tempo que se tornara impossível, por milhentos factores, conjugar uma frase, de uma forma melódica e agradável aos seus ouvidos, onde interviessem todos estes termos.

Toda a família estava a precisar de férias e, melhor, junto à praia, àquela praia onde o espaço para a brincadeira era generoso e a água era pacífica e acolhedora! Não era o Paraíso mas ajudava a conhecê-lo melhor…

Depois de montado todo o arraial composto por chapéu-de-sol, toalhas, bolas e raquetas de praia, mochilas com os lanches e água, cremes protectores e bronzeadores, ele predispôs os seus adereços de forma a fazer aquilo que achava divinal e estava mesmo a precisar: deitar-se na toalha, com o boné a proteger-lhe os olhos do Sol e, a seu lado, um livro. Sim, ele gostava imenso de ler! Tinha reaprendido, já em adulto, quando a vida o permitiu, o gosto pela leitura e estava a fazer incursões pelo campo da mente humana, tentando conhecer-se melhor, através do conhecimento e das experiências dos outros. Naquele preciso momento, andava a ler Nietzsche e o seu Zaratustra e tinha acabado de ler um outro livro, Arroz do Céu, que o tinha sensibilizado mas que entendia não lhe dizer respeito directo: digamos que não se revia em nenhum dos protagonistas daquela história.

Com a esposa acomodada e os quatro filhos, entre os 16 e os 9 anos, entregues às brincadeiras (e a eles próprios, a fim de ganharem autonomia e independência), foi a vez dele se preparar para um início de tarde descontraído. Deitou-se, protegeu-se do Sol com o boné e pegou no Nietzsche. Já ia na página 63. Era tudo muito confuso e interligado sem o parecer, ideias de quem pensa imenso… talvez aprendesse mais alguma coisa.

“É preciso honrar no amigo o próprio inimigo. Podes aproximar-te do teu amigo sem passar para o seu campo? É preciso ter no amigo o melhor inimigo. É resistindo-lhe que ficarás mais perto do seu coração.” Que ideias estranhas, quase absurdas… amigo e inimigo!

De repente, a bola dos putos acerta-lhe em cheio nas mãos e faz-lhe cair o livro na areia.

– Então, pessoal! Tenham mais cuidado! Parem lá um pouco e descansem! Ninguém consegue estar sossegado, irra! – E, assim, deu asas ao seu mau-humor repentino.

Não ouviram o vosso pai?! Sentem-se lá, aí, a jogar as cartas ou a outro jogo calminho, enquanto não é hora do banho! – Aconselhou a esposa, no seu papel de elemento ligante entre pai e filhos.

Depois deste episódio, já não pegou no livro. De facto, aquela não era leitura apropriada para aqueles momentos. Acomodou o corpo à areia, protegido pela toalha, cobriu os olhos com a pala do boné e deitou o livro a seu lado.

Tudo sossegou à sua volta. Chegava até si o ruído cíclico e monótono do vai e vem da água, o piar de algumas gaivotas, o som surdo de uma imensidão de gente nas praias mais próximas e as vozes, quase em surdina para não o incomodar, dos seus filhos, que se distraiam a catalogar as diversas e dispersas nuvens que, nesse dia, tinham decidido aparecer. Nuvens de Verão. Não o incomodavam, as nuvens, antes pelo contrário, de vez em quando acalmavam o calor no corpo provocado pela insistência tórrida do Sol. Sentia-se, agora, muito bem. Começava a descontrair e os seus músculos contraiam e descontraiam em espasmos de sono. Não se opôs ao cerrar de olhos. Seria por pouco tempo e iria ser muito agradável…

– Vê lá, não adormeças! – Avisou a mulher, vigilante e perfeita conhecedora dos hábitos do esposo. – Olha que está muito calor e ainda agora acabámos de almoçar!

Ele já não lhe respondeu, embora a tivesse ouvido. Estava, tão-somente, a saborear o momento…

– É um coelho deitado! – Dizia um dos filhos.

– Não é nada! Eu acho que é um comboio! – Ripostou um outro.

– Vocês não percebem nada disto! Nem é um coelho, nem é um comboio, é um comboio de coelhos! – Gracejou o mais velho e riram todos a bom rir, perante o olhar admoestador da mãe.

– E aquela, será o quê?! – Desafiou o mais calado deles.

– Eu acho que é … – E o resto da resposta volatilizou-se no som do mar, no piar das gaivotas, no som surdo da multidão lá longe, no remanso daquela tarde.

O céu começou a escurecer tapado pelas nuvens e os sons a diluírem-se, a diluírem-se, a diluírem-se… até se extinguirem de todo. Já nada mais, nem ninguém se encontrava na praia. Só ele! Ergueu ligeiramente a cabeça, olhou em volta e nem Sol se via. Nada! Ninguém! Não era possível: tinha-se feito noite cerrada, lua-nova em semana de lua-cheia, nada se movia e estava ali sozinho… ou quase.

Os seus sentidos de auto-defesa foram dirigidos para focos de luz, estendidos na areia, nas dunas atrás de si, que separam a praia da mata, numa zona que parecia mesmo a entrada para uma gruta. Eram como formas vivas de algo, projectadas no chão. Não conseguia aperceber-se de quê ou de quem eram as formas luminosas, só sabia que ali estavam, como que expectantes e, aparentemente, numa atitude própria de quem o estudava.

– Quem ou o que é que vocês são? – Titubeou, hesitante, verificando que não reconhecia a sua voz naquele som que tinha acabado de sair da sua garganta.

– Pergunta errada! – Respondeu-lhe uma das formas. – Deves perguntar-te primeiro quem és tu!

– Pergunta parva, essa! Eu sei quem sou! Sou um ser humano normal… – Aprontava-se ele para responder quando foi interrompido por outra das formas.

– Normal!? Que eu saiba, todos os seres humanos normais – E acentuou ironicamente esta última palavra – não têm sombra se não houver luz e muito menos uma sombra luminosa maior que ele próprio!

Voltou-se bruscamente, como se sentisse alguém a seu lado, e lá estava a sua projecção luminosa na areia, enorme e altiva! Com a presença destas formas luminosas, via melhor o que se estava passando à sua volta mas, mesmo assim, nada conseguia ver que o auxiliasse a compreender aquele momento. Era como se fosse cego e se apercebesse, apenas, de manchas de luz para onde olhasse!

– Não percebo nada! Onde estou eu? – Perguntou ele, começando a sentir alguns suores frios e tremores a percorrerem-lhe a pele.

– Amor, muda de posição! – Ouviu a sua esposa aconselhá-lo e remexeu-se ligeiramente na toalha. Esta voz teve o condão de o acalmar um pouco, mas por pouco tempo.

– Já verificámos que não sabes quem és, não sabes quem somos, nem sabes onde estás. Achamos que podemos ajudar-te. Neste momento estás na Praia das Sombras Luminosas, que somos nós. Aqui só as sombras se percebem e convivem. Nós representamos as sombras de outros seres, daqueles que continuam maiores do que as suas sombras, sempre que a luz estiver acima deles. – Interveio uma daquelas formas e continuou – Tu estás aqui porque deixaste que a tua sombra crescesse mais do que o devido! Engrandeceste sem humildade e isso reflecte-se na sombra e não no corpo. A sombra é, assim, o sinal da tua falta de humildade.

– Então, isto é um tribunal? – Interrompeu ele.

– As palavras são tuas, nós apenas pretendemos ajudar-te a lembrares quem tu és, mesmo não o sabendo nós. – Responderam.

– Bolinhas! Com creme, sem creme! – A vendedora de bolas de Berlim passou por eles e nem os viu, apregoando o seu negócio. Ele chamou-a, gritou-lhe, acenou-lhe, mas ela nem parou. Se calhar, era melhor assim, pois deve evitar-se comer bolos com creme na praia: são indigestos!

– Eu acho que sei quem sou e…

– Alto! A questão principal não é quem tu és agora, a questão é não esqueceres quem foste quando a tua sombra era mais pequena que tu, sempre que a luz estava por cima de ti. – Interromperam todas as sombras luminosas ao mesmo tempo, em uníssono, como que querendo vincar bem a ideia principal.

Sentia-se confuso. O que é que lhe estava a acontecer? Ele só queria descansar do trabalho de todo um ano e do frenesim do dia-a-dia. Achava que tinha o direito a esses momentos. O culpado desta situação só podia ser do livro confuso que estava a ler, só podia ser do Zaratustra!

– Fiel! Anda cá mê menine! Os homes maus levaram o mê menine! Vocês viram o mê canito? – Perguntava, agora, a Dª Rosa às sombras luminosas que lhe responderam negativamente.

– Boa-nôti, mê senhor! Come é qu’é o sê nome? Ah! ‘Tá tam grande! E é memo parecide com o pai! É memo a cara do pai! – Ele quis responder-lhe, mas ela não lhe deu tempo para isso e lá continuou pela praia fora, assobiando ao Fiel que, provavelmente, não andaria por ali.

– Mas, vocês conhecem a Dª Rosa?! – Perguntou ele às sombras luminosas, entre o atónito e o angustiado.

– Claro que sim! – Responderam a uma só voz, de novo, e uma delas continuou – Esta senhora tem algo a ver contigo. Apesar de estar quase senil, ela tem aquilo que tu não tens: pode não saber já quem é mas não esquece partes importantes da vida e de quem foi!

– Mas, eu não quero ficar como ela! – Murmurou ele, num lamento de um futuro desconhecido, voltando-se de barriga para baixo, como que querendo evitar ver e ser visto.

– Mas nós também não o queremos! Apenas desejamos ajudar-te a não esqueceres. Quanto mais diferente te tornas, mais tu deves lembrar o eu que eras e que te permitiu ali chegar. – Assim respondeu aquela que parecia a mais velha e respeitada.

Começou, então, a sentir algo a cair sobre si mas não conseguia aperceber-se o que era. Eram grandes quantidades de partículas pequenas que lhe salpicavam o corpo. Abriu as mãos em concha e apanhou alguns grãos. Era arroz, àquela hora, naquele local, naquelas condições e vindo não sabia de onde. Ia para comentar o sucedido, para falar do livro que lera, quando uma das sombras luminosas se lhe antecipou:

– Não te preocupes com isso. Com toda a certeza, este cenário não estava destinado a ti. Isso já pára. Tu não precisas de ajuda de espécie alguma e não te revês no papel de necessitado, por isso, esquece…

Fez-se tamanho silêncio, naquele desvario ilógico de sensações, que deu a ideia de tornar-se eterno. Parecia estranho mas ele precisava de terminar aquela conversa de outra forma, embora não tivesse a mínima noção como. Para além de que estava cansado.

– Tenho sede… – Balbuciou, desalentado, ele.

– Tens água na tua mochila, basta levantares-te e ires buscá-la. – Responderam-lhe.

Mas ele nada fez. Sabia que tinha pouca água e queria demonstrar que era forte suficiente e bastante melhor ser humano do que aquilo que deixava transparecer.

– Talvez prefiras um café e um chocolatinho!?

“Que horror!” – Pensou ele. Estavam, certamente, a testá-lo, a torturá-lo, mas nunca o iriam domar! Era teimoso por natureza e cego por opção e, desta forma, tinha conseguido ser feliz! Assim tinha conseguido ser e ter tudo o que era e tinha!

– Acho que já vi um filme parecido com isto! – Provocou ele, tentando obter tempo e respostas. – Isto não passa de um pesadelo, de uma prova a superar, e que vai acabar a qualquer momento…

– Filmes? Eu prefiro o Aniki-Bobó! Adoro o Manoel de Oliveira! Há uma certa continuidade nos seus filmes que se prolonga no tempo…

– Ah! Não! Casablanca! Casablanca!

– Esses são todos filmes de colecção, apenas! São do tempo do Charlie Chaplin e do seu Modern Times. Falem-me em 3D, isto é que é mesmo bom! 3D!!!!!

E a conversa entre as sombras luminosas continuava acesa e disputada quando passou por eles, gorducho e desafiante, Michael Moore, e lhe gritou:

– É uma conspiração! Não acredites no que vês! Acredita, apenas, no que sentes! – E, assim, se esfumou no enfiamento da praia, gritando:

– É uma conspiração! Não acredites, acredita!

Agradava-lhe aquela teoria conspirativa, no fim de tantas que não entendia e de outras que não queria entender, aquela tinha algo a ver com ele.

– Então, tens sede e não bebes? – Perguntou-lhe a sombra principal. – Sabes que não deves bebê-la, pois não iria chegar para todos, não é? Pois bem, agrada-nos que penses não só em ti, é um bom sinal e por isso temos algo para te oferecer.

Dito isto, retirou uma garrafa alta e esguia de um local imperceptível aos seus olhos e passou-lha para as mãos, dizendo:

– Este líquido vai saciar a tua sede, no entanto, há uma condição implícita e para o beberes terás que proferir a seguinte frase: “Eu vi a gruta!”. Mesmo que não entendas já o sentido, continua a dizer esta frase, até conseguires que a garrafa solte a rolha e possas, assim, beber o líquido precioso e único deste recipiente. Não esqueças: “Eu vi a gruta!”. Tenta agora!

Não havia qualquer relação lógica, naquele momento, entre o nada e alguma coisa, mas estava cansado daquela situação e, sedento, resolveu seguir o conselho e tentou.

– Eu vi a gruta! – Disse ele, com pouca veemência.

– Não! Assim, não resulta! Tens que acreditar naquilo que estás a fazer! – Gritaram-lhe.

– Eu vi a gruta! Eu vi a gruta! Eu vi a gruta! – E repetia, cada vez com mais confiança e mais alto.

– Oh, homem, acorda! Estás todo transpirado e a falar de coisas que ninguém percebe! Acalma-te!… – Era a sua mulher que lhe falava, enquanto o abanava para o acordar.

Ele abriu os olhos alertado e ofegante e feriu as retinas ao dar de caras com o Sol. Lá estava tudo: não só o Sol mas, também, a praia, o livro, o chapéu, as mochilas, as raquetas e bolas, a água num vai e vem, a mulher, os filhos, em amena brincadeira, a multidão ao longe e, ainda, algumas nuvens no Céu. O local onde estava deitado estava coberto pela sombra do chapéu e o seu corpo estava transpirado e trémulo.

– Credo! Estás com febre?! – Alarmou-se a esposa.

Ainda não conseguia responder-lhe. Olhava à sua volta e não via sombras luminosas. Estava tudo normal e a sua sombra não estava mais pequena do que ele, agora que a luz não estava mesmo por cima dele. Teria que esperar pelo dia seguinte.

– Então, aquela, ali, parece o quê? A mim parece-me uma bola de Berlim! – Desafiou o filho mais novo.

– O que tu queres, sabemos nós! – Responderam os outros.

– A mim, parece-me uma… gruta! – Ouviu-se a voz do pai, quase sem controlo no que dizia.

Todos ficaram calados, entreolhando-se, não sabendo o que dizer nem fazer. Não o queriam ver exaltado nem zangado.

Percebendo o desconforto, ele levantou-se, rejuvenescido, olhou para os filhos e, depois, novamente, para o Céu e disse:

– Estava a ver que acreditavam! Aquilo é mesmo e apenas uma… nuvem. Vamos lá às bolas de Berlim, depois a uma futebolada e, por fim, a um ganda banho!

Todos rejubilaram! Levantando-se e agarrando-se ao pai gritaram: “Sandes de pai!”

E as nuvens desapareceram.


A casa do Pai Natal dos pobres

Tinha acabado de contornar a placa com a indicação do nome da rua que procurava e aproximava-se, com passos decididos, da casa que, a julgar pela numeração, se anunciava como a “Casa do Pai Natal dos Pobres”, na secção dos classificados de um jornal que, literalmente, lhe tinha ido ter às mãos.

Depois de confirmar e reconfirmar o número da porta, com aquele que estava inscrito na folha de jornal – que trazia consigo no bolso do casaco, pedindo voluntários para ajudar a distribuir alguma comida quente, conforto e companhia, naquela noite de Natal, a quem merecia sentir-se pessoa pelo menos uma vez por ano – hesitante, abriu o pequeno portão de ferro que antecedia a entrada principal daquela casa térrea. Aquela casa nada tinha que, exteriormente, indicasse ser a casa que ele desejava que fosse. Subiu cinco degraus de pedra molhada para um pequeno patamar, aproximou-se da porta e tocou à campainha. Apercebendo-se de passos leves e rápidos a aproximarem-se, no lado de dentro da casa, com gestos maquinais levou a mão ao escasso e ralo cabelo para o dominar junto à cabeça e compôs o corpo magro ao jeito do fato que, numa observação mais cuidada, alguém deduziria que poderia não lhe pertencer. Gostaria de vir a causar boa impressão e confiança, pois seria muito importante para si que aceitassem os seus préstimos, em especial naquela noite tão especial.

A porta abriu-se, a meio dos seus pensamentos, e teve que baixar o campo de visão para responder à criança que lhe perguntava, olhando-o, inocentemente: “Quem é?”. Ia começar a dizer quem era e o que queria mas não teve tempo, tão-pouco, de vocalizar uma única letra porque a criança ainda não tinha acabado a pergunta e já se dirigia, tão imprevisível quão rapidamente, para outra sala gritando: “Mãe, está aqui um senhor velhote!”. Aquelas palavras, ditas de uma forma tão cândida e, ao mesmo tempo, tão cruel, ainda lhe ecoavam através do emaranhado de sentimentos opostos, quando se aproximou uma mulher, ainda jovem, de sorriso aberto e semblante interrogativo que, saudando-o, lhe indagou: “Boa-tarde! Em que posso ser-lhe útil?”. Era, sem dúvida, uma senhora bem formada e a pergunta fez reacender nele a ideia de que poderia estar enganado no endereço ou, pior, que o anúncio fosse uma brincadeira de muito mau gosto. “Boa-tarde, minha senhora!” – correspondeu ele, com aquilo que achava ser o seu melhor sorriso, mesmo estando destreinado e sendo tipicamente tímido. E, prosseguiu. “É bem possível eu estar enganado mas…” não foi necessário continuar com as suas palavras, pois não devia ser grande surpresa para a jovem mulher o facto de alguém estranho à casa tocar àquela campainha, naquela véspera de Natal, uma vez que o interrompeu, vivamente, dizendo: “não está enganado, não; esta é mesmo a Casa do Pai Natal dos Pobres, este ano, já que não se sabe se, para o ano que vem, não seremos nós os pobres, não é?!”, perguntou retoricamente como um aparte evidente e, perante a expressão de sério assentimento do voluntário, concluiu: “como isto está, nunca se sabe!…”. Antes que ele pudesse reagir, com alguma frase adequada ao momento – embora, perante a velocidade e o imprevisto da sucessão de imagens que se iam acumulando no seu interior, não lhe fosse muito fácil pensar – deu por si a ser gentilmente puxado para o interior da casa. “Venha, entre! Esta é a entrada principal mas o outro portão é que está reservado para receber os voluntários; no entanto, como já aqui está, sinta-se convidado a ir até ao local de trabalho, por este atalho.” – disse a jovem com simpatia. Ainda teve ânimo para se desculpar por não ter reparado na indicação, que se encontrava mais à frente do pequeno portão de ferro por onde entrara, mas de pouco lhe valeu já que a mulher continuava a percorrer, sala após sala, calçada com uns botins apropriados à quadra, servindo-lhe de guia e sem se deter e, também, muito provavelmente, já sem o ouvir, com um barrete natalício enfiado na cabeça, tapando-lhe as orelhas.

Enquanto avançavam através das sucessivas salas da casa, passavam por eles, homens e mulheres, de diversos níveis etários, de barrete vermelho na cabeça, atarefados nas funções que lhes tinham sido confiadas para que, ao fim do dia, tudo estivesse pronto para se dar início à distribuição de roupas e comida a quem mais necessitava e que mais desprotegidos se encontravam, pelas lúgubres, frias e desumanas ruas da cidade. Este frenesim de gente em ebulição solidária criava um ambiente acolhedor propício à finalidade da acção. Cada pessoa era um sorriso e uma determinação e cada gesto tinha como objectivo suavizar, por um breve momento, a vida de um qualquer estranho que carregava consigo um fardo de tristeza, abandono e solidão. E, talvez, fome…

A casa estava iluminada e havia uma árvore de Natal rodeada de caixas e caixinhas de papel colorido a um canto de uma das divisões; a atmosfera quentinha era agradável e até por não haver muitos sinais de riqueza, tudo isto criava-lhe uma sensação familiar, despertava-lhe recordações, adoçava-lhe os pensamentos. Abanou a cabeça como se quisesse sacudir de si este amolecimento e correu uma cortina sobre si mesmo, encontrando forças para prosseguir. Ele tinha de terminar aquilo a que se propusera e havia muito a fazer ainda.

Era mesmo no limite interior da casa, junto a um anexo que ligava a um pequeno quintal, que ele estava ser mais necessário, segundo lhe disseram, depois de a mulher o ter apresentado ao, notava-se bem, chefe da equipa. Este era um indivíduo volumoso, talvez pelo fato, talvez pelo próprio corpo, em comparação com a sua magreza extrema. A roupa que vestia seria reconhecida em qualquer parte do planeta e recebeu-o, bonacheirão e prazenteiro, com um caloroso e esperado “Ho! Ho! Ho!”. “Meu amigo, seja bem-vindo a uma casa que, este ano, se transformou na Casa do Pai Natal dos Pobres, por vontade de um grupo de amigos que acha que os ricos não necessitam de nada daquilo que queremos dar a quem nada tem; os ricos, lá terão o seu próprio Pai Natal!” e prosseguiu, sem esperar resposta: “Obrigado, por querer participar nesta acção humanitária que será sempre insuficiente mas que nos fará sentir honrados e mais humanos.” E, sem parar, continuou: “creio que já saiba ao que vem, por isso, e para que o possamos contactar para o próximo ano, preencha esta ficha com o seu nome, endereço e contacto, se assim o entender, coloque-a naquele monte de outras fichas e comece a ensacar esta roupa que já está preparada para tal”. Dito isto, recebeu uma ficha em branco e uma caneta e encaminhou-se para o canto da sala onde estavam os outros papéis. “O meu nome, esta noite, é Pai Natal e o seu?”. A pergunta apanhou-o desarmado, sem defesas preparadas e hesitou, na resposta, mas sussurrou: “José; o meu nome é José”. Depois de um breve silêncio, iluminaram-se os olhos do Pai Natal que exclamou feliz: “Penso que já percebi e acho que também o meu amigo se quer enquadrar mais com o espírito desta campanha: José, pai de Jesus! Assim seja! Já agora, em que zona é que mora? Sabe, é para depois o deixarmos em casa, se ficar para a distribuição, também, pois a nossa tarefa vai acabar pela noite dentro e, com toda a certeza, vai querer chegar a casa a tempo de passar a Consoada com a Família!”. Este Pai Natal falava demais, pensou. “Ali, para os lados do Rato…”, ouviu-se a responder e calou-se, de novo, baixando a cabeça, como que algo embaraçado. Logo após este quase diálogo, todo o movimento recomeçara, como se nada se tivesse alterado e o Pai Natal ausentou-se para outra sala, soltando uma gargalhada de satisfação que contagiou toda a gente presente.

Ainda um pouco atordoado por toda aquela dinâmica e pela figura e desenvoltura do anfitrião, depositou a ficha em branco em cima das muitas outras já preenchidas e, acercando-se do grupo que tinha recomeçado o trabalho, disse, decidido: “Ora, aqui estou eu! Onde estão os sacos? Vamos a isto!” e, assim, começou o seu voluntariado, a favor dos mais desprotegidos e, muitos deles, abandonados, pelas próprias famílias e pela restante sociedade, que se encontravam espalhados nos cantos mais recônditos que os acolhia e lhes servia de jazigos, ao mesmo tempo que iam morrendo, pouco a pouco, até que o pouco se esvaísse, na hipocrisia de quem fingia não os ver! Mas ele sabia-o e queria dar o seu melhor contributo, da única forma que podia.

O resto da tarde passou-se num ambiente entre o fabril e o febril, tal a quantidade de trabalho que havia a fazer. Os seus olhos enchiam-se de luz e alegria ao embrulhar e ensacar roupa que iria tornar o Natal de alguém, este ano, mais feliz e seria ele uma das pessoas responsáveis por essa mesma felicidade! Que felicidade, que prazer! Nunca antes tivera a ideia que este ano lhe trouxera o vento, quando arremessou contra ele uma folha de jornal solto com um convite tão motivador! A princípio, achara que não tinha condições para concretizar esse desejo mas as coisas lá se resolveram e encontrou forma de poder estar ali, naquele momento, juntamente com muitas outras pessoas, estranhas entre si, a contribuir para a felicidade, mesmo que efémera, de outros estranhos. A diferença estaria naquilo que cada um daria, apenas, e ele iria dar aquilo que podia e que mais valioso tinha: ele próprio, solidariedade e dignidade! Por um dia; nem isso, por uma noite…

A noite aproximou-se velozmente, como seria de esperar nesta época do ano, e trouxe consigo um frio gélido e letal para aqueles que não têm um tecto para se abrigar nem roupa quente suficiente para se cobrir. Mal deu pelo tempo passar quando o Pai Natal reapareceu e deu por concluídas as operações em curso. Era hora de fazer um levantamento da situação, relativo à quantidade de doses de comida pronta e quentinha, acabada de confeccionar na cozinha da casa e à roupa ensacada pelos voluntários presentes naquela sala. Havia que chegasse para, aí, umas cem unidades! Não iriam salvar o Mundo, nem erradicar a pobreza do planeta mas estavam prontos para aliviar o sofrimento e a solidão, embora por pouco tempo, de cerca de uma centena de rejeitados e marginalizados por quem tinha de diferente, apenas, a condição social.

“Ho! Ho! Ho!”, recomeçou o Pai Natal, “chegámos ao fim desta etapa, da qual todos nos lembraremos para sempre e sobre ela muitos de nós iremos falar na ceia familiar, aos nossos melhores amigos e familiares mais chegados. Suponho que se torna desnecessário agradecer-vos tudo o que fizeram pois cada um de nós se sentirá feliz e mais realizado depois de sair daqui. Só preciso, agora, de quatro voluntários para prolongarem a vossa dádiva e seguir-me na distribuição de tudo aquilo que aprontámos a fim de aquecer as almas e os corpos de infelizes seres que esperam humildemente por nós. Só quatro, não precisamos de mais, até porque a carrinha não permite mais passageiros.”

Sem dar tempo a ninguém, como se quisesse deixar bem vincada a sua vontade férrea e tenaz de comungar aquela noite com quem mais precisava, ele, o voluntário da ficha em branco e do fato largo de mais para tanta magreza, levantou o braço sobressaindo no lote de pessoas de expressão já um pouco cansada e a necessitarem recolher aos lares, onde estariam as famílias à espera. O gesto lesto e voluntarioso fez-se notar e foi, por isso, aplaudido com respeito e admiração. A seguir a ele, outros três avançaram, de bom grado. Depois de despedidas circunstanciais e votos de festas felizes para todos, pacificamente a casa foi ficando mais silenciosa e calma, ouvindo-se em surdina, nas salas mais afastadas, músicas próprias da quadra festiva e risos de crianças felizes. Ele reconhecia aqueles sons e, também ele, já tivera sonhos em que voltara a rir como aqueles meninos. Outros tempos, pensou, outros tempos…

Assim que o último voluntário saiu, começou a arrumar-se a comida e a roupa, que tinha sido doada pela vizinhança e amigos próximos e distantes, no interior da carrinha estacionada em frente ao portão maior, já na rua. A noite estava calma, sem chuva e pouco ventosa, engalanada por um firmamento estrelado que fazia sonhar os olhos das crianças com as renas do Pai Natal, através do embaciado dos vidros das janelas das casas aquecidas e acolhedoras mas o frio congelava os corpos mais frágeis dos que tinham que assistir à passagem de mais uma noite do lado errado da vida.

Depois de tudo pronto, consolou-se o estômago com uma simples sandes e uma tigela de sopa bem quente, que ele devorou em silêncio. Tendo sentido as atenções centradas nele, apressou-se, atabalhoadamente, a justificar: “Sempre comi assim… ainda me lembro de os meus pais até dizerem que parecia que eu ia para a cavada… outros tempos… mas, agora, é porque precisamos despacharmo-nos… há alguém à nossa espera!”. O Pai Natal olhou para os outros e todos se apressaram a acabar de comer, disfarçando a situação em comentários dirigidos a toda a azáfama do dia. Não havia mais tempo a perder, de facto. A noite já chegara e as estrelas apelavam ansiosamente ao seu dinamismo. Levantaram-se bem-dispostos, dirigiram-se para a viatura carregada, acomodaram-se o melhor que puderam no seu interior e, à falta de renas, ligou-se o motor. “Ho! Ho! Ho!” foi o sinal que serviu para o trenó, isto é, a carrinha, iniciar a fase final desta acção de gratidão para com a vida e para com aquilo que esta lhes tinha dado, até àquele momento.

Visitaram vários pontos da cidade que, de acordo com um plano estudado a partir de informações recolhidas ao longo do ano por amigos, entidades particulares e outros ilustres desconhecidos, seriam aqueles que maior preocupação traziam à mente do Pai Natal. Em quase todos esses pontos de paragem, ele apercebia-se estoicamente de comentários, em surdina, em relação a si, ditos por alguns dos infelizes, relativamente à sua aparência. O ser humano acha que conhece outra pessoa apenas por aquilo que ela aparenta e, por vezes, muitas vezes, é cruel! “Vem para aqui de fato! Deve ser um ricaço qualquer que tem problemas de consciência!” ou “Deve achar-se muito importante, por dar esmola aos pobrezinhos!” ou, até “Parece mais desgraçado do que nós! Nem cabe na roupa!”, “Se calhar, pediu-a emprestada para vir à festa!” e riam, alguns, enquanto outros, mais sensatos e gratos, ripostavam “Devíamos estar reconhecidos a esta gente que aqui vem!”, “Claro! Pelo menos estes lembraram-se de nós!”. Estava mesmo muito frio, mas a sopinha quente e o peixe com batatas cozidas amornava o desconforto e aproximava as pessoas. Assim, no fim da distribuição em cada ponto de paragem, ficava-se um pouco à conversa, falando da vida, daquilo que se tinha esperado dela e daquilo que poderia ainda estar reservado a cada um e, aí, ele sentia-se como peixe na água e era aquele que melhor se aproximava dos abandonados, que mais facilmente se integrava, se dava e se magoava na hora da despedida. Um abraço sentido, um aperto de mão forte e sincero e um Feliz Natal e boa sorte. “ Afinal, o homem é um bom homem!”, “Vês, eu não tinha razão?! Linguarudos ingratos!”, “Está bem, está bem, tens toda a razão!”. E a carrinha da Casa do Pai Natal dos Pobres lá partia para outro ponto problemático da cidade, com a alma mais reconfortada, onde se repetiam os mesmos gestos, as mesmas conversas e, no fim, as mesmas e emocionadas despedidas.

Era quase meia-noite quando as doses de comida e de roupa chegaram ao fim. Se mais houvesse, mais pessoas haveriam para as receber, mas terminara. No rosto de cada um dos cinco ocupantes da viatura haviam sinais claros de fadiga e de alguma ansiedade para voltarem ao calor do lar e das pessoas que os esperavam para a ceia de Natal. Em todos eles se notava, no entanto, uma imensa paz interior e uma felicidade incontida por terem ajudado a minimizar uma noite, apenas uma de tantas outras em que lá não iriam estar, a angústia e a solidão de tanta gente, de entre tantas outras mais que eles nem conseguiam aperceber-se, na realidade! Todos estavam radiantes mas era ele quem estava mais perto do céu, em pleno acalanto de ternura e todos os outros o sentiam, nele e por ele, sem saberem bem porquê…

Um a um, foram sendo deixados à porta de suas casas pelo Pai Natal; ele ficou para o fim. Passou para o banco da frente, ao lado do seu anfitrião. Este retirou a barba e o postiço da barriga e ficou humano, como ele. Olharam-se profundamente nos olhos e leram a mensagem que cada um enviava, sem palavras audíveis e desnecessárias. Arrancaram para a última viagem, sem renas nem Pai Natal. Em silêncio, chegaram à zona do bairro do Rato, onde ele dissera viver, e o condutor abrandou a sua marcha e estacionou num local algo sombrio. “Aqui, está bem?” – perguntou-lhe o anfitrião. O seu corpo estremeceu, de forma incontrolada, tendo sido facilmente notada pelo acompanhante, que sorriu misteriosamente e concluiu, assim, que a resposta era afirmativa. Após a carrinha ter parado, o ex-Pai Natal disse: “O meu nome é António e, como seria de esperar, sou um simples mortal que teve a honra de, ajudado, ajudar alguém nesta noite tão especial para tantos mas tão frívola para muitos mais! Não ajudámos todos mas apenas alguns. Sei que, aqui nesta zona, também, há alguns pontos onde se concentram cada vez mais pessoas necessitadas. A pensar nisso, guardei este saco de roupa e esta dose de comida para o José entregar a alguém que saiba que precisa. Obrigado, por tudo, amigo!”. Dito isto e sem esperar por resposta, agarrou em dois sacos, um com comida ainda morna e outro com alguma roupa preciosa e útil, e entregou-lhos. Saíram da viatura e abraçaram-se. António regressou rápido ao lugar de condutor e, espreitando pela janela oposta, aberta totalmente, despediu-se: “Tenha cuidado consigo! Não lhe desejo Feliz Natal pois sei que foi feliz esta noite! Quem sabe se não nos encontraremos para o ano que vem?!”, “Obrigado, Pai Natal! Quem sabe, não é?!”. Ficaram, uma vez mais, entendendo-se com o olhar de quem sabe coisas que não diz e a viatura partiu, levando um e deixando outro, ambos felizes, cada um pelas suas razões.

Depois de a carrinha ter desaparecido, na curva mais próxima da estrada, José encaminhou os seus passos para a entrada de um edifício muito próximo, mesmo, do ponto onde tinha sido deixado, com os dois sacos nas mãos. Aquela era uma zona escura e triste da parte mais antiga e degradada daquele bairro. Caminhando sem se deter, como quem vê o que mais ninguém conseguiria ver àquela hora, naquele local, José contornou o prédio antigo e dirigiu-se para as suas traseiras. Num ponto “abrigado” e tapado por cartões parou e sentou-se. “Então, Zé, ´tás bem? Correu tudo bem? O fatito ‘inda ‘tá como novo? Sabes que amanhã tenho que o entregar ao dono, não é? Por aqui ninguém apareceu, este Natal. Hummmm, cheira mesmo bem! O que é que tens aí?”. Ao seu lado estava sentado um mendigo da vida, com uma avalanche de perguntas. Ele pouco disse e dividiu a comida quase fria pelos dois. “Peixinho bom! Há tanto tempo que não trincávamos nada assim, não é?!”. Ele assentiu e contemplou as estrelas, enquanto mastigava a comida. Depressa o manjar desapareceu; uma dose para dois tornava mais fácil esta conclusão. “Brrrrrr, ‘tá mesmo frio hoje, pá!” – queixou-se o colega de amargura. José agarrou no saco de roupa e sacou, de dentro, uma manta, uma camisola, um par de calças e um par de meias. Determinou-se o que seria para um e para outro e cada um isolou-se do outro.

A noite de Natal estava silenciosa, calma mas fria e um vento agreste começou a afirmar-se fazendo levantar do chão as folhas de papel e jornais que rodopiavam em redemoinhos. Fora assim que, há uns dias atrás, uma folha de jornal lhe viera ter às mãos e lhe dera a oportunidade para fazer, ainda, alguém feliz.

No fundo do saco estava um carapuço vermelho e, dentro, um envelope aberto com uma missiva lá dentro. Com o amigo já embrulhado na manta, José deslocou-se para uma nesga de luz, enterrou a cabeça quase calva, até tapar as orelhas, no carapuço e leu: “Amigo José, a minha família sentiu-se tocada pela honra em o ter tido connosco, nesta noite. Calculamos que esta tenha sido, para si, uma das mais lindas noites de Natal destes últimos anos; para nós também assim foi. Sabemos que a vida nem sempre é aquilo que queremos que seja mas desejamos-lhe a melhor sorte do Mundo! Assina: A Casa do Pai Natal dos Pobres”.


Noite de Natal – Cap. I

Esvaía-se em sangue. Agonizava. No torpor da agonia, não sentia dores; tão-só amargura e conseguia, apesar do momento, recordar rostos, sons e aromas de tal forma que quase os vivia de novo, quase os sentia. Eram estas as recordações que, naqueles instantes, o ajudavam a suportar a agudeza da dor que trespassava todo o corpo, como várias lanças e espinhos espalhados pela pele…

Nascera entre Dezembro e Janeiro, já não conseguia lembrar-se bem. O seu pai, José, fora carpinteiro e, sua mãe, Maria, era uma mulher simples que, como muitas das mulheres do seu tempo, tinha como missão principal tratar das lidas domésticas, apoiar o marido, criar os filhos e alimentar os animais, quando os tinham.

Portanto, os seus pais trabalhavam para os outros e viviam daquilo que produziam sendo, assim, pessoas consideradas pobres. A sua casa era humilde, não tinham luxos nem objectos supérfluos e ele brincava com os outros da sua condição, pelos terrenos baldios junto ao casebre e abrigo de misérias. Mas era feliz! Sim, ele lembra-se que era muito feliz! Não tinha tudo o que gostaria de ter mas gostava de tudo o que tinha e, isso, era mais que suficiente!

A casa era muito pequena e rudimentar, construída à mão pelo pai, com a preciosa ajuda de amigos e vizinhos que, como era hábito, naqueles tempos, seriam ajudados por José e Maria naquilo que, depois, fosse preciso. Era uma casa pobre, com poucos haveres mas que tinha um brilho especial como se fosse iluminada por uma estrela oriental que pudesse servir de guia a qualquer viajante. E quem quer que fosse que batesse à porta, em busca de água ou um pouco de pão para comer, seria sempre bem recebido e sairia com amizade eterna!

A comida era pouca mas era elaborada com tal arte que tinha o dom de saber a manás próprios de deuses e, acima de tudo, sabia que tinha sempre a melhor parte guardada para ele! Sentia os olhos dos pais lavarem-no de amor e alegria quando os três se juntavam à mesa e, depois de um agradecimento algo cerimonioso, começavam a desfrutar do pouco que tinham com sabor a imenso!

Na escola e no convívio com a religião, ele era um menino bem comportado, inteligente e especialmente interessado em aprender, de tal forma que facilmente entrava na conversa dos mais conhecedores e participava nas discussões mais profundas sobre os mistérios e metáforas que compunham a cultura tradicional popular. Chegou a intrigar e a causar uma profunda admiração ao pastor religioso da sua região pelas questões pertinentes e plausíveis acerca de assuntos, como a Fé a devoção, que ninguém antes se atrevera a pôr em causa, especialmente numa festa da Páscoa… sim, ele recordava-se, tinha sido na Páscoa!

Em casa, via o pai como um herói e a mãe como uma carinhosa bênção! Desde o nascimento que tudo fazia supor uma vida sagrada e bendita. Tudo se conjugava, como um puzzle de dez mil peças montado dia a dia, peça a peça, no encaixe certo, pelas pessoas indicadas, no momento mais adequado e da forma mais correcta!

Tinha aprendido a ser bom e a respeitar todos os outros, mesmo aqueles que diferissem das suas opiniões e atitudes, com a mãe omnipresente e eleita, por ele, ao pedestal mais sagrado do altar dos seus sentimentos! Era piedoso para com os desfavorecidos e solidário, até ao limite, com os amigos sofredores. A lealdade e a honradez eram-lhe familiares como se fossem uma terceira pele e o robustecessem ainda mais!

O pai era a sua figura exemplar de homem de trabalho, pacífico, honrado e leal, e o guardião-mor da família. Nenhum mal poderia acontecer a nenhum deles, pois o pai lá estaria, na sua defesa, mesmo em sacrifício dos seus ideais. Da mesma forma, seria o pai a ensinar o bom caminho a percorrer e a palavra de Homem que o filho iria aprender. Também iria aprender, mais tarde, que nem todos os filhos a tinham aprendido, talvez porque nem todos os pais a tinham ensinado…

Só em adulto fora baptizado por alguém que se chamava João Baptista e, sem espanto nenhum para os pais, aquele dia terá sido como o primeiro da sua vida, como se lhes tivessem anunciado que o seu filho estava preparado para o mistério da vida! Como acto desejado pelo pai, foi solta uma pomba branca em direcção aos céus, simbolizando a paz das suas vidas e agradecendo ao Criador o filho sagrado!

No entanto, o passar dos grãos de areia pela ampulheta do tempo vai criando erosão e alterando muito do que de bom todos nós temos e, com ele, passou-se o mesmo. Não era ele, também um ser humano? Não estava ele sujeito às leis universais que regem os nossos movimentos e acções? Os sentimentos estão cá mas são burilados pela sociedade e pelo convívio diário com os outros e, assim, apesar de ter passado uma infância feliz e uma adolescência sólida em aprendizagem e rica em conhecimentos adquiridos e vividos com amor, quando atingiu a maioridade achou que tinha que descobrir outros lugares, outras gentes, para espalhar a palavra e o ser que o formava. Iria partir como uma missão, como um sacrifício, como uma forma de mostrar que estava de facto preparado, vencendo todas as tentações e perigos que lhe aparecessem!

Os pais estavam a envelhecer, já pouco tinham para dar e ele nada conseguia oferecer. Naquela terra não haviam mais caminhos para percorrer e todos eles iam dar ao mesmo sítio: ao centro da aldeia, onde as gentes se misturavam na tarde de Domingo e nos dias de festa. Para além de Madalena, uma jovem que diziam pecadora por amar, e que também ela já tinha partido, diziam que forçada a tal, nada mais havia a cintilar que pudesse lembrar-lhe as estrelas no céu por cima da sua casa. Por isso, despediu-se dos pais e partiu…

A partida tinha sido sofrida e não fora necessário sequer falar dela. Já todos sabiam o que iria acontecer, como se houvesse escrituras que antecipassem estes momentos e dessem a conhecer aos pais os seus pensamentos! Os pais são assim mesmo: conhecem os filhos de maneira que estes não sabem e lêem-lhes os olhos e os gestos, tornando inúteis as palavras. As palavras podem magoar mais que um gesto e foi, assim, que a despedida se resumiu a gestos: um abraço forte entre os três, lágrimas soltas nos olhos da mãe e escondidas nos do pai, um sorriso de confiança e Fé e a oferta de uma pequena cruz de madeira que o pai fizera para si na noite anterior. Esta cruz simbolizava o amor dos pais e seria, também, símbolo do amor do filho…

Chegado à cidade brilhante, pôde verificar que também era pecadora, fria, injusta, cruel e demolidora de esperanças. De pouco lhe valeu o seu ofício, ou as palavras, e muito menos a Fé! Foi rapidamente trucidado pela indiferença humana e, sem dar por tal, começou a conviver com os mais desgraçados e pobres da cidade, desconhecendo a diferença entre a noite e o dia, transformando a água em vinho, como necessidade essencial do corpo esquelético e reencontrando Madalena nas ruas da amargura, arrependida, pecadora, perdida e sem Fé! Nenhum dos dois iria deixar descendentes, nem mandamentos…

Naquela noite, após tempos atrás de tempos sofridos, com trinta e três anos que pareciam trinta e três séculos, depois de ter afogado as mágoas em vinho, esquecendo os ensinamentos sagrados dos pais, revoltou-se contra os companheiros de miséria e, pegando num varapau, agrediu-os por se terem instalado a coberto de uma igreja da cidade e por não respeitarem o santo local!

Madalena, que o acompanhava, como que assustada, afastou-se da sua loucura momentânea e, nesse preciso instante, de forma abrupta e selvagem, um dos indigentes aproximou-se traiçoeiro como Judas, por trás, e desferiu uma punhada, com uma pedra da calçada fechada na mão, na cabeça do pobre homem! Este, depois de estar no chão, atordoado e com sangue a cobrir-lhe a visão, foi violentamente agredido pelo grupo inteiro que apenas parou devido aos gritos estridentes de Madalena pedindo socorro.

“Coitado! Parece um Cristo!!!” – gemeu Madalena e cobriu-o, piamente, com uma capa que a protegia do frio, abraçando-se a ele.

De facto, o sangue escorria-lhe pela cara, empapando a farta e suja barba, a cabeça estava irreconhecível e, apenas, os olhos estavam fixos em lugares que ninguém adivinharia e que emprestavam ao seu semblante uma aparência de alívio, de paz, de reencontro com a felicidade…

As autoridades chegaram ao local, fizeram uma breve apreciação da cena que lhes era apresentada, contactaram com o INEM e identificaram o homem que fora vítima de tão bárbaro ataque. Desajeitadamente, descobriram um papel que tinha sido, noutros tempos, um bilhete de identidade onde conseguiram ler apenas o nome de família: Jesus. Involuntariamente, estremeceram e aconchegaram as roupas ao corpo, pensando ter sido do vento frio que se fazia sentir. Olharam uns para os outros. Nada de novo, na vida deles. Apenas mais um caso. O homem, no chão, já não se mexia, há algum tempo. Quando o INEM chegou confirmou aquilo que já se sabia. Ao colocarem-no na maca, um deles reparou que aquele indivíduo tinha uma mão fechada junto ao peito. Abriram-na. Uma pequena cruz de madeira era toda a riqueza dele e toda a sua riqueza cabia numa só mão.

Era noite de Natal. Os carros de distribuição de comida quente aos pobres daquela zona da cidade fria estavam a chegar. O local ficou vazio. A brigada da polícia regressou ao seu posto. A ambulância partiu e transportou consigo um corpo que tinha chegado ao fim da vida, como Lázaro, levando a sua cruz. E não se sabendo se tinha perdoado aos seus agressores, por não saberem o que faziam…

Madalena vestiu, novamente, a capa, aconchegou-se e foi para o fim da fila de espera da comida quente.

Era Natal! Noite de Paz! Noite de Luz!

Amanhã seria, já, outro dia…

Noite de Natal – Cap. II

Madalena dirigiu-se para a fila de espera da comida quente, que se alongaria, pelas suas previsões de cliente deste tipo de serviços, aí para uma boa meia-hora! Estava um frio desgraçado: o vento soprava gelado, vindo dos lados da sua terra, das serras agrestes da Beira Alta, a roupa desfiava-se, desconstruía-se no seu corpo magro e indefeso e… o homem que estava à sua frente tinha-se voltado para si e estava a oferecer-lhe o lugar! Um lugar somente, que podia, mesmo assim, definir a refeição daquela noite, uma vez que, quando terminassem as rações da carrinha, esta partiria e regressaria, sabe-se lá…

Agradeceu o convite e, claro, não o recusou. Ocupou a sua nova posição, endereçou-lhe um breve olhar e dirigiu-lhe um obrigado que se perdeu num sopro de vento. Olhou, de novo, o homem do acto generoso e sentiu que já lhe tinha visto o rosto antes, não sabia definir nem de onde nem quando; mas, como é que ela iria conseguir saber, se já tinha conhecido tantos homens antes!?

Depois de ter recebido a sua refeição, cujos aromas tépidos lhe acariciaram a face e humedeceram os olhos, deitou um breve olhar em volta, em busca de um lugar resguardado de más intenções, e aconchegou-se num canto, segurando aquele bem precioso pousado em cima dos ossos dos joelhos e tapando melhor as pernas com a capa que, com a pouca claridade, não se notava que estava ensanguentada.

Pouco depois, surgiu-lhe o vulto do homem generoso, em frente, que se sentou a seu lado, sem a consultar ou pedir licença. Os códigos de civilidade dispensam-se, para aqueles lados e naquelas situações, se é que alguma vez foram aprendidos.

Devoraram em silêncio o conteúdo dos pratos de plástico e guardaram o pão com a peça de fruta, num saco de plástico que os protegeria da chuva, para quando a fome apertasse mais. Aos solavancos, primeiro um, depois o outro, pela grande necessidade de falar, não tanto como de ouvir, lá acabou por ser o homem generoso a fazer valer as suas palavras e a captar a atenção ouvinte dela.

Tinha nascido na cidade, naquele mesma cidade, naquele mesmo bairro. Podia dizer-se que, quando nasceu, já era órfão de pai e de mãe! Nunca tinha sabido quem era o verdadeiro pai, de todos aqueles que a mãe lhe tinha mostrado (e não tinham sido poucos!) e sabia quem era a mãe pelas chegadas e partidas ao quarto minúsculo onde moravam, quase por caridade.

A mãe era conhecida por outro nome mas ele preferia lembrar-se que se chamava Maria. Segundo ela própria, o pai verdadeiro (nunca tendo ele percebido o verdadeiro sentido para “verdadeiro”) chamava-se José. Ela trabalhava muito e estava sempre ausente. Antes de ir para o trabalho, pintava as unhas, da cor dos lábios, com um carmesim acentuado, polvilhava as maçãs do rosto em tons de rosa, disfarçava o escuro dos olhos, escondendo as olheiras noctívagas e esticava as pestanas para lhes dar uma beleza faraónica. Tinha um lápis preto, o qual molhava com a ponta da língua, para desenhar um ponto apelativo algures junto ao queixo, como vira nas páginas de uma revista de estrelas de cinema. As sobrancelhas eram aparadas e limitadas a um corte fino e estreito, arqueadas e, também elas, coloridas a negro. O cabelo enchia-se de laca, para dar volume e proteger por mais tempo uma “mise” amarelada e baratucha. A roupa que usava era apertada e curta e as meias eram de rede, lembrando pesca e pescadores. Por fim, os sapatos de salto muito alto, pontiagudos, a terminar em bico de metal, faziam conjunto com a bolsinha brilhante que lhe guardava as misérias, entre outras misérias.

Ele ainda tinha uma fotografia dela a preto e branco, já algo desvanecida, encaixada num coração de metal, que tinha achado com outra fotografia, e que transportava consigo para todo o lado, pendurado a uma corda no pescoço, onde se conseguia adivinhar aquilo que fora, em tempos, uma cara bonita e jovem mas sulcada por alguns vincos e sinais de vida difícil. A senhora que tomava conta dele, sempre que a mãe não estava, tinha-lhe dito que fora ela que lha tinha deixado como recordação, quando um homem de bem decidiu levá-la, segundo se contava, lá para os lados da Beira Alta. Ele gostava de acreditar que assim fora mas, na verdade, nunca mais soube nada dela, embora continuasse a ouvir falar dela coisas que o seu sistema de auto-defesa se obstinava em remeter para o sótão do esquecimento… tinha ficado o retrato no coração, junto ao seu.

Do pai, pouco ou nada sabia e, talvez, aquilo que pensasse saber não o soubesse, verdadeiramente. Já pouco importava. Houvera um tempo (durante, ainda, muito tempo!) em que tudo fez para o conhecer e se, por acaso, o tivesse conhecido sentia que teria sido muito feliz, que ficaria reconfortado e que, quem sabe, esse facto lhe permitisse enfrentar a vida de outra forma! Mas, não! Nunca tivera a felicidade de encontrar ou ser encontrado pelo pai e tanta falta este lhe tinha feito! Talvez, também, por isso, nunca tivesse tido filhos; não saberia lidar com eles, porque não tinha padrões paternos.

Nunca tivera uma casa só dele, nunca tivera uma mãe só dele, nunca tivera um pai, nem família, nem educação, nem apoio, nem grande história para contar, nem ninguém para contar a sua história… até agora.

Achava que tinha nascido no Natal e, por piada dos amigos dos copos, chamavam-lhe Jesus. Não se lembrava de alguma vez ter sido feliz e não tinha aquilo que gostava nem gostava do que tinha. As brincadeiras de criança de rua eram as mesmas todos os dias: juntava-se um grupelho de rapazolas, com o mesmo tipo de sorte que a dele,  e debandavam, logo pela manhã, pelas ruas da cidade, roubando fruta aqui, pedindo dinheiro ali, tratando mal os transeuntes finórios, zaragateando e lutando em qualquer parte, tomando banho nas fontes públicas, jogando à bola nas ruas e praças, fugindo da “bófia”, frequentando os bairros míseros e mal frequentados e regressando, já noite alta, para o buraco que piedosamente lhe permitiam usar, na casa da tal senhora que tomava conta dele, quando a mãe não estava, isto é, sempre!

Não se recordava de alguma vez ter entrado numa igreja, ou de ter rezado. À volta dele, ninguém devia saber ladainhas, Pai-Nosso, Avé-Maria ou outra forma qualquer religiosa de estar e de viver com os outros. Os seus mandamentos eram incontáveis e adaptavam-se a qualquer situação, desde que o primeiro fosse: “faças o que fizeres, foge e não sejas apanhado!”

Era, ainda, um homem relativamente novo mas os traços vincados e tristes de uma vida difícil tinha-os herdado da mãe. Podia dizer-se que teria cerca de trinta e três anos, embora a barba crescida e desgrenhada enganasse alguém que se quisesse dar ao trabalho de olhar para ele.

Nunca aprendera um ofício mas sempre tivera a arte de se safar, fosse a que preço fosse. Tinha passado pelos corredores sombrios de uma casa de correcção de menores e, mais tarde, como ele também costumava brincar, tinha-se doutorado numa prisão de gente adulta, de onde se tinha posto em fuga, para passar o resto dos dias em tormento permanente.

Na prisão tinha aprendido a fazer tapetes com os maços de tabaco usados, pequenas peças utilitárias em madeira (cachimbos, barquinhos, bonecos, etc.) e objectos com paus de fósforos queimados. Tudo isto, para além de gazuas, “naifas” e cigarros enrolados com ervas secas e folhas de árvore.

Ainda na prisão, o padre de serviço àquele estabelecimento, João Baptista de seu nome, convencera-o a baptizar-se. Ele permitira ser convencido a tal, uma vez que essa cerimónia iria ser colectiva e fora dos muros da “prisa”, o que lhe daria a vantagem sagrada de poder escapar, no meio da confusão. Foi o que fez e, desde logo, agradeceu não sabe bem a quem, essa oportunidade. Como paga, desde esse dia prometeu seguir o conselho dado pela senhora que o criara e que se resumia ao seguinte: se alguma vez ele se perdesse, bastaria seguir a direcção da estrela que despontava do topo daquela mesma igreja onde estavam agora, que se situava numa das colinas da cidade, e que ficava mesmo defronte da casa onde ele tinha tido um espaçozinho reservado.

Sempre assim o tinha feito e nunca se tinha perdido! Aquele átrio daquela igreja tinha, desta forma, um significado muito especial para ele: representava o local da sua infância, a imagem que fora percorrida pelos olhos da mãe, sempre que chegava e partia, os passos dados pelo pai, mesmo que ali tivesse ido uma vez apenas, o pouso e repouso do seu corpo após a idas e voltas da vida! Era, claro que era, sagrado, mesmo que ele não soubesse bem o significado daquilo que é sagrado! Para além do mais, ele considerava aquele espaço como algo seu, pois sempre ali tinha vivido, sempre ali se tinha divertido e tinha como missão defender, a qualquer preço, todos os recantos e sombras da igreja. Por fora, claro! Ela, Madalena, estava ali, naquela noite de Natal, em que ele, provavelmente, fazia anos, como seu convidado, como seu hóspede e ele permitiria que ela ocupasse a melhor das guaridas!

Fora por esta razão sagrada que ele, há umas horas atrás, tinha ensinado uma lição a um demente, a um bêbedo que resolvera começar a agredir todos aqueles que ali estavam em franco convívio, como todas as noites o faziam. Aquele estranho não compreendera que quem estava ali a mais era ele e não os outros! Após ter derrubado aquele homem, seguiu o seu primeiro mandamento e fugiu para um local que só ele conhecia onde se escondeu até a polícia ter ido embora. Regressara para a fila da comida quente e encontrara-a, a ela, Madalena.

Desta forma se passou o resto da noite. A capa ensanguentada protegia os corpos friorentos dos dois e o de Jesus protegia o de Madalena.

Madalena fazia-lhe lembrar a mãe… e adormeceu agarrado àquela mulher que lhe dava amor e ao coração de metal que continha a fotografia quase imperceptível da mulher que lhe dera vida mas não amor.


Um dia na vida de Amélia

Não precisei de luz, para acordar… hoje especialmente, mas não há noite sem luz para mim. Passo-as todas em claro, eu e uma outra que habita em mim e que teima em não me abandonar. Talvez ela seja a única que ainda não me abandonou… todos acham que estou louca mas o que eles não sabem é que somos duas: eu a querer sossegar eternamente e a outra eu a acordar-me de cada vez que adormeço. Por isso, nunca preciso de luz, nas manhãs que os outros nem sabem que existem. Estou sempre vigilante e ausente… estamos!

Mas hoje, especialmente hoje, não haveria luz nem ruído algum de que eu necessitasse para me acordar, caso tivéssemos adormecido. Improvável, mas…

Ainda ninguém tinha chegado para pôr para fora da cama os meus companheiros de final de caminhada, neste Lar de (chamam assim) Idosos, já eu andava de um lado para o outro, atarefada em encontrar a roupa que melhor me assentaria. Mas, claro, se uma mulher dificilmente escolhe, logo à primeira, o conjunto de trapinhos que melhor se adequa à sua personalidade ou a um dado momento, imagine-se agora duas mulheres para uma única opção! E que duas! Sim, pois eu hoje também estava bastante interventiva e contrariava facilmente a minha companheira… no fundo, parecia-me que, embora não o dizendo, ela também se alegrava com a minha desenvoltura, o meu arreganho inesperado! Eu estava surpreendendo-a e este inesperado, até para mim mesma, satisfazia-me sobremaneira… satisfazia-nos, sei bem!

Assim, bem cedo, às horas a que se chama de madrugada, já eu estava despachada! O vestido tinha sido eu a escolher, de acordo com o acontecimento, e os sapatos, a malinha de mão, o cinto e o perfume tinham ficado para escolha da minha parceira, que se sentira honrada em fazer parte do lado de fora das duas! O banho, as pinturas, o cabelo e as unhas, permiti-me guardá-las para uma dessas senhoras, a Cristininha, que aqui vem lembrar-nos de que ainda respiramos e que a nossa cruz não é aquela pendurada em todas as paredes deste enorme casarão, por onde deslizam sombras que se designam por seres religiosos que, de vez em quando, nos atormentam mais do que o mafarrico! A nós as duas, claro! Os outros… esses, já nem dão pela existência deles, muito menos pela nossa! E nós, constantemente, sentimo-nos vitoriosas! Pensam que também já não existimos, mas enganam-se! Redondamente e a dobrar!

Assim que a alvorada soou, não causámos grande alarido por já estarmos a pé mas, sim, pela beleza que exibimos! Gostaríamos que vocês os vissem! Pareciam fantasmas assustados!!! E nós? Nós sempre com uma postura muito digna, muito vertical, quase senhorial, saboreando o momento, como se ele fosse eterno! E o colar! O colar que a Cristininha me escolhera para usar mais logo, ficava-me mesmo bem! Devo confessar, eu estava linda!

Mas, como em quase tudo na vida, nada dura para sempre, passado o assombro inicial, já ninguém se interessava por nós, excepto alguns dos companheiros que ainda não se tinham apercebido que já estavam fora da cama, com os olhos fixos no nada, talvez pensando o mesmo que nós, noutros dias, mas hoje… hoje seria impossível, tal é o nosso aparato e agitação! Estávamos vistosas e facilmente avistáveis!

O pequeno-almoço passou num repente e tivemos imenso cuidado em não sujarmos a linda roupa que nos aprimorava o corpo e embelezava a alma! Lavámos muito bem a dentadura, fizemos umas quantas caras tolas para o espelho que nos respondeu na mesma moeda e treinámos algumas poses corporais de que nunca nos esquecêramos! Ainda temos escondidos os nossos truques femininos, nas mangas de toda a nossa roupa! Eh! Eh!

A manhã foi passando muito dificilmente… os minutos pareceram horas e as horas pareceram séculos, enquanto nós esperávamos encostadas ao vidro da porta do Lar! Sabíamos que, mais minuto menos minuto, a minha filha, o genro e os netos aí apareceriam sorridentes e felizes por me verem tão linda e feliz por eles e por mim mesma e nos levariam para casa. Hoje, especialmente.

Eu sei que eles não me podem ter lá em casa, durante todo o tempo. A vida está difícil, o espaço é reduzido, não há cama para mim, os netos vão crescendo, já são dois os animais domésticos e o dinheiro não dá para tudo! Sei que não é por vontade deles que aqui estou, acredito neles, apesar da minha companheira de alma me contrariar e dizer que eles usam o meu dinheiro da reforma para usofruto deles! Eu acho que é a vida! É…! Eu entendo-os…

Assim, com as minhas ansiedades e sobressaltos momentâneos, a hora do almoço chegou num ápice mas eles ainda não tinham chegado! Coitados, deviam estar preocupados, pelo atraso… alguma coisa acontecera, eu tinha a certeza! A minha amiga estava sempre a enervar-me, a envenenar-me, dizendo que eles se tinham esquecido de nós mas eu sabia que não! Sabia que não poderia ser assim!

Estávamos encostadas ao vidro da porta e daí via tudo o que se passava na rua, todos os que entravam e saíam… tinha a certeza de que eles estariam a chegar, não tardaria nada! Tinha a certeza de que seria uma consoada consolada! Eu tinha esperado por aquela noite sagrada, em família, junto de quem tanto amava e que tinha a certeza de que também me amavam, de tal forma que até já me tinha recordado de todos os cânticos de Natal da minha meninice, para cantar aos meus netos! E eu sabia que eles iriam adorar! Parecia-me já os estar a ver, surpreendidos por eu cantar tão bem e por ainda me lembrar de tanta coisa bonita! E mais… eu estava segura de que eles ainda iriam pedir mais! “Mais uma vez, avozinha!”, diriam eles e eu, eu claro que lhes faria as vontades! E o dia seria assim passado em felicidade! A noite seria quente e vivida em volta da mesa, rindo e celebrando com amor, com muito amor!

E ali continuava eu e a minha companheira de alma, com a cara encostada ao vidro, esperando pela minha família, que estaria prestes a chegar! O que eu já não conseguia, agora, suportar eram aquelas pessoas de volta de mim, dizendo tontices e palermices!!! A convidarem-me a sair dali, de onde podia ver a rua e de onde iria ver a minha família chegar, a qualquer momento… diziam-me para desistir de esperar! Mas eu negava-me a sair de onde estava, porque o meu coração não admitia outra coisa que não fosse, de um momento para o outro, ver aparecer aqueles sorrisos que eu tão bem vincara na minha imaginação! A minha companheira também não me ajudava nada! Não me dava a paz que eu precisava! Mas eu sabia que eles viriam, apenas estavam atrasados… acontece, por vezes! Seria impossível a minha filha esquecer-se de mim! Não! Isso seria impossível, de todo!

“Larguem-me!”, gritava eu para quem me queria arredar dali, junto ao vidro, olhando para a rua cada vez com menos gente. Já tinha passado a hora de almoço! Os meus familiares deviam estar aflitos, pobrezinhos… deviam estar preocupados comigo, pensando que eu estava a sofrer pelo seu atraso casual, mas eu acreditava neles, eu acreditava… Não! Não sairia dali! O relógio maldito também estava a ser meu inimigo e teimava em não parar e os seus ponteiros corriam ainda mais depressa à volta do mesmo ponto! Já toda a gente tinha almoçado no Lar e estavam todos em redor do ponto onde eu estava, mas não estavam à espera de ver chegar ninguém… apenas eu ainda acreditava! Eles olhavam e esperavam ver até quando eu aguentaria ficar ali.

Que teria acontecido de tão grave? Deviam ter tido algum acidente! Nem queria pensar naquilo, nessa triste ideia que acabara de ter tido! E as pessoas à minha volta estavam cada vez mais teimosas… não me largavam, não me deixavam em paz, esperando os meus queridos! Eles deviam saber que os familiares não esquecem familiares! Os filhos não esquecem os pais, pois não? Eu nunca esqueci os meus! Nunca esqueci a minha filha… seria impossível ela esquecer-se de mim… eu não sou uma coisa, não sou um objecto!

Mas o tempo estava a derrotar-me. Confesso… a minha companheira também estava a vencer-me… e se me esqueceram mesmo? Não podia ser verdade, pois não? Ouvia, agora, atrás de mim, alguém ter telefonado… sim, parece que se esqueceram mesmo… que tinham perdido muito tempo nas compras de última hora… e eu não compreendia bem como podia isso ter acontecido… eu nunca me esqueci, nem dos pais, nem da filha… devia ser engano…

Mas não, afinal, não era mesmo engano… desisti, recolhi. Este ano já não haveria Natal, nem cânticos, nem consoada, nem alegria, nem felicidade, nem família… já não haveria mais Natal algum.

Desisti… dei o comando dos passos à minha companheira… certamente ela não saberia o que fazer, o que era bom… voltaria a não ser notada, seria igual a todos os outros que nem sabem que já morreram… seria apenas mais uma na noite a que vão chamar de Natal, este ano aqui, juntamente com vários outros que as famílias se atrasaram em vir buscá-los em anos anteriores!

Mais tarde, ouvi dizer que queriam vir buscar-me ainda nessa tarde… mas eu disse que não. Eu já tinha esquecido os cânticos, já despira e guardara para sempre a roupa onde cabiam duas de mim, as pinturas já tinham ido com a água e o perfume desvanecera por completo! Agora, era eu que não queria ir! Sou uma mulher digna! Sempre o fui! Sempre fui uma senhora com honra! Agora, não! Agora, fico à espera de um Natal que não vai passar por aqui! Que não vai entrar por aquela porta onde estive, a olhar pelo vidro, para a rua, esperando que a minha família chegasse!

Ainda continuo bonita… gosto muito deste colar!


Restos de estrelas

Acordou com o barulho do ladrar dos cães, nos terrenos próximos de casa. Envolto na penumbra do quarto, originada pela entrada de uma luz ténue, através das persianas mal fechadas da janela do quarto, rolou ligeiramente para o lado de dentro da cama. A cama de casal estava, uma vez mais, àquela hora, vazia. Como ele próprio.

Levantou-se penosamente e dirigiu-se para a casa-de-banho. Acendeu a luz e deu de caras com o reflexo da sua imagem no espelho. Ali estava ele… ou o que ainda restava dele. Estava velho! Pior, sentia-se mesmo velho! O tempo atropelara-o já depois de ele ter atropelado o tempo. Não havia nada a fazer, quanto a isso, a não ser que aprendera mais uma lição. E, uma vez mais, tarde demais…

Depois de tomar o pequeno-almoço sozinho, começaria um novo dia, igual a outros, fazendo companhia às horas que passassem e entretendo os pensamentos com algumas actividades que lhe preenchiam os dias e acabavam por lhe dar algum prazer. Mas nem sempre assim fora… houve tempos em que achava que ia ser feliz para sempre e que ia conseguir fazer, todos à sua volta, também, muito felizes! Tempos houve em que fora mesmo muito feliz! Mas ele não sabia tudo, como qualquer ser humano, claro, e uma das coisas que não sabia é que há um conceito utilitarista da vida e das relações humanas, seguido por muitas pessoas, que origina a perda de valores sentimentais e de afectos, de proximidade, de carinho, de toques… e ele estava, precisamente, no centro dessa ausência.

Ninguém o tinha afastado, nem repelido, era apenas um processo normal em sociedade e ele tinha vivido com a esperança que assim não fosse ou que não fosse ele a ser um dos escolhidos para essa provação. Era bem tratado, tinha sempre a roupa pronta e asseada, nada lhe faltava e só não tinha companhia, nem palavras, nem afecto.

Quanto à família, todos se tinham já habituado a vê-lo distante, ausente e metido com ele próprio. Tinha horários e hábitos que não encaixavam nos deles e, quando falava, dizia coisas sem grande sentido, sem grande utilidade.

Nos últimos tempos andava cada vez mais fechado e rabugento, como se todos tivessem culpa de algo que não percebiam. Começava por se opor, por se intrometer em questões e decisões que nunca tinham passado por ele antes e, assim, chocava constantemente com tudo e com todos. Quase sempre as conversas perdiam sentido e acabavam em clima de guerrilha familiar! Tudo isso corroía as ligações que os deviam ligar até que, finalmente, ele percebera qual era o seu papel, aquilo que a mulher e os filhos esperavam dele.

Tinha estado muitos anos intermitentemente ausente e era esporádica a sua aparição em casa. Nunca os problemas anteriores tinham tido a solução a passar por ele, da mesma forma que havia grande parte deles que nem chegaram ao seu conhecimento.

Na época, a sua profissão era conhecida como “caixeiro-viajante”. Andava de terra em terra, com uma caixa que continha amostras de objectos em cristal. Eram lindas aquelas peças e ele tinha tido algum sucesso com as vendas! Sempre que expunha os cristais, sentia enorme prazer no toque, no manuseamento e exposição daqueles artigos que, de tão reluzentes, brilhantes e atractivos, ele chamava ternamente “estrelas”… sim, ele vendia estrelas e iluminava os olhos e a vida a quem as comprava!

Quando regressava a casa, era como se chegasse, também ele, uma estrela cheia de luz, de brilho e de calor: a família mostrava-se feliz, ele esquecia as vendas e todos viviam aqueles curtos dias como se não existissem outros!

Os tempos modernos trouxeram inovações tecnológicas e novas formas de transportes que arrasaram o seu modo de vida. Para além disto, a sua idade, embora parecesse bem mais novo, por esta altura, começava a ser preocupante para se encontrar novo emprego. E ele sempre tinha tido como actividade profissional aquela que tanta felicidade lhe tinha trazido…

Com o seu afastamento laboral, encheu-se de esperança no conforto, na paz e no amor que poderia agora dar e receber, em família. No entanto, cedo se apercebeu que as coisas não funcionavam assim: a mulher não era a mesma com quem tinha casado e jurado amor terno e eterno, os filhos tinham crescido e estruturado personalidades sólidas e independentes e ele não encontrava nem o lugar nem a missão que julgava estar guardado para si… ninguém estava preparado para ele!

Foi assim que o ex-caixeiro-viajante concluiu que tinha perdido as suas estrelas e que nunca chegaria a ser nenhuma, na verdade.

Isolara-se, fechara-se e definhara. Implodia, aos poucos. Começou, então, a vaguear pelas proximidades da casa, nos campos e montes próximos. Primeiro, a qualquer hora do dia e, por fim, apenas ao entardecer, até a noite cair. A família sabia por onde ele andava e sabia que voltava sempre com um saco de serapilheira com objectos a tilintar lá dentro, na maior parte das vezes, que dizia serem restos de estrelas caídas do céu. A mulher e os filhos perdoavam-lhe as palavras e justificavam-nas com o estado semi-senil com que ele vivia. Assim que chegava, dirigia-se imediatamente para um anexo, no quintal, onde ninguém mais lá entrava porque achavam que ele assim o quisesse. Mesmo quando parecia que nada trazia no saco, ficava lá dentro algum tempo e, depois, entrava em casa para petiscar qualquer coisa que lhe tivessem deixado.

O dia chegava ao fim sem grandes conversas e apenas sentiam os olhos dele cravados em cada um, com um olhar que não entendiam mas a que já estavam tão habituados que não lhe davam muita atenção.

Certo dia, como consequência natural da vida, faleceu. Este momento não foi sentido como especial, nem diferente, pois aquela família era tão racional que se poderia dizer, injustamente, que eram indiferentes. Quando chegaram a casa, ele ainda estava na cama fria. Como ele…

Sem drama, realizou-se o funeral e tratou-se de recolher os objectos e roupas do defunto para poderem ser distribuídos pelos mais necessitados da sociedade. A esposa era uma mulher prática e sabia que a vida não ia parar. Não valia a pena chorar os momentos bons nem os maus porque, um dia, seria assim, também, com ela.

O último compartimento a preparar para os novos tempos que aí vinham foi o anexo do jardim. Finalmente, iam todos entrar no verdadeiro mundo dele. Não esperavam encontrar nada de especial, antes temiam enfrentar um verdadeiro caos de cacos velhos e artefactos inúteis.

Acenderam a lâmpada pendente do centro do tecto, como um pequeno Sol e pararam. Em silêncio, com as lágrimas a fugirem dos olhos e o corpo a tremer de emoção descontrolada, sentiram que tinham entrado num ambiente único e maravilhoso, digno de apenas alguns mortais: a luz pendente, difusa e fraca, incidia os seus raios em inúmeros pequenos pontos que reflectiam essa mesma luz, como se fossem estrelas! Por todo o anexo, encontravam-se fotografias da mulher, do casamento e dos filhos e, no centro de todas elas, uma única imagem sua, sorridente e feliz! À volta de cada fotografia, os pequenos pontos intensamente brilhantes eram pedaços coloridos de vidro que ele coleccionava todos os dias do chão dos montes e dos campos e, por cima da bancada de trabalho, estava pendurada uma tarjeta onde estava escrito “Estas são as minhas estrelas!”


O homem que lia poemas num banco de jardim…

Todos os dias, pela manhã, o jardim tornava-se o anfitrião desejado e apetecível para gente e outros seres. Como um processo natural, recomeçava todos os dias a roda-viva entre crianças a caminho da escola que arrastavam pais e avós para os baloiços e para o lago, adultos apressados sem tempo para admirarem a paisagem exótica e o odor que se desprendia do alto arvoredo, casais de namorados – amantes da pessoa amada –, passarada num chilreio e esvoaçar contínuo, pombos, muitos pombos, rondando os bancos espalhados pelo jardim, pequenos roedores, rivais das aves, em busca de sementes ou migalhas perdidas e… velhos arrastando o corpo para o seu banco preferido ou, simplesmente, para aquele que ainda não estivesse ocupado. O dia nascia para que os seus seres renascessem ou, apenas, continuassem a sua existência.

Aquele era, de facto, um jardim admirável! Ao centro, ponto onde todos os caminhos se cruzavam, tinha o parque destinado às crianças, e era, talvez por isso, o lugar mais ocupado e onde se focavam mais as atenções. A rodear este local, em forma concêntrica, riscados pelos tais caminhos de acesso e de passagem, existiam canteiros de flores cobertos de relva aparada e viçosa, sempre muito bem tratados. No topo mais perto do caminho principal, numa área aberta e a fazer fronteira com o passeio, protegido por outro canteiro de flores e relva entre algumas árvores, situava-se um pequeno lago, com uma ponte de madeira, de onde as pessoas admiravam o labor dos peixes em busca de alimento e do pão que lhes atiravam para a água. Por fim, no topo oposto, debaixo de árvores frondosas e, muito provavelmente, também elas já centenárias, estavam dispostas em círculo algumas mesas e bancos de pedra, que recebiam na sua sombra acolhedora os velhos que iam para lá passar o tempo a jogar cartas, dominó e damas e, ainda, outros velhos, que não intervinham: eram apenas espectadores, como o terão sido sempre, na vida.

Já ali morava há muitos anos. A praceta, desde então, nada tinha mudado. Apenas o jardim se ia adaptando aos tempos mas, na sua essência, acolhia o mesmo tipo de seres e era palco das mesmas actividades. Do alto da sua varanda, aberta para a praceta onde se desenhara o jardim, mesmo antes de ele o conhecer, tinha ele passado os mais belos momentos da sua vida, com o seu amor, a mulher de sempre, ela, a única. A varanda protegia, por detrás das portadas de madeira, o leito acolhedor dos seus corpos sempre insatisfeitos, na infância do amor, e extenuados, nos derradeiros capítulos da vida. Nos últimos tempos, pela manhãzinha, vestiam-se o mais rápido possível que os seus lentos movimentos permitiam e lá ia ele fazer uma torradinha e aquecer uma caneca de leite para os dois, sempre deliciado e prazenteiro, enquanto ela o esperava sentada numa cadeira de braços confortáveis. Depois, ficavam com as portadas escancaradas à espera que os primeiros raios de Sol aparecessem e aquecessem as árvores, as aves e as pessoas que circulavam lá em baixo e os seus próprios corpos de ossos cada dia mais frágeis. Passavam grande parte da manhã, vendo os movimentos dos outros, cochichando como dois adolescentes, lembrando segredos, sorrisos cúmplices e mãos dadas. Os seus dedos afagavam-se como a cabelos de criança e os olhares meigos humedeciam-se agradecidos. Por vezes, ele pegava num livro de poemas que ela adorava e lia-lhe alguns dos sonetos que sabia serem mais do seu agrado. Outras vezes, variava para obras de Balzac, que lhes enleava a alma em suspiros e romance. E os dias chegavam ao fim, como todos os dias, da mesma forma que as suas histórias iriam brevemente terminar, e ele não sabia. Até um dia. Apesar de os últimos anos terem sido mais dolorosos, as primeiras horas do dia alimentavam-lhes, desta forma, a alma para o resto dos seus dias.

Agora, já nada fazia sentido. Estava só e não tinha um pingo de coragem para abrir as portadas da varanda e olhar a felicidade dos outros. Tinha perdido a vontade de rir e a sua cúmplice já não lhe recolhia as mãos nas suas mãos nem devolvia a ternura no olhar. Tinha perdido o hábito de fazer torradas, pela manhã, e o seu corpo sentia a falta da sua metade, na metade ainda mais fria da cama do quarto dos hóspedes, que nunca existiram. Os livros de sonetos e os romances e contos da Comédia Humana de Balzac repousavam esquecidos na mesinha-de-cabeceira, do lado dele, num quarto que permanecia fechado. Como ele…

Pensara, em tempos, que iria ser feliz para sempre, para toda a vida, mas enganara-se, pois havia mais vida para além do sempre. Os espaços da casa estavam revestidos de recordações, de fotografias pelas paredes e molduras espalhadas por todos os móveis da casa, dos sons das rádio-novelas, que ela tanto gostava de ouvir, e dos relatos de futebol ao domingo à tarde, que, compreensiva, ela tolerava. Ouviam-se, ainda, os passos das crianças, que já não eram crianças e que já não viviam ali há muito tempo e quase sentia o respirar morno dela junto à sua cara nas noites dolorosas e mal dormidas passadas no quarto mais afastado do seu quarto. Percebera que não estava preparado para esta solidão…

Desceu a escada em direcção à rua, sem saber bem o que iria fazer. Deambulou pelas redondezas, tropeçando nos transeuntes desinteressados, como um ébrio trôpego e sem destino. Com o olhar ausente, fixo no infinito da sua amargura, sem planos e sem vida, deu por si a entrar no jardim da praceta onde morava. Passou pelo lago e parou na ponte, olhando os peixes que o olhavam momentaneamente mas logo avançavam para outras silhuetas que lhes atiravam pedaços de pão e restos de bolos secos. Tentou sentir alegria ou alguma vontade em ficar a apreciar esta aparente idílica paisagem mas estava vazio e retirou-se. Achou que ninguém se tinha apercebido da sua presença. Arrastou os pés, que lhe puxaram o corpo, para o centro do parque, onde havia um grande corrupio de crianças em alvoroço e de adultos despreocupados trocando palavras e conversas de ocasião. Não se deteve, olhou à sua volta e encontrou, ainda um pouco afastado, um banco vazio onde descansava um raio de sol. Sentou-se, permitindo o breve afago solar, voltando-se de costas para o resto do banco e recostando a cabeça no antebraço que deslizara para a cabeceira das tábuas. Fechou os olhos, por momentos. Sentiu-se mendigo e, desanimado, adormeceu sentindo as lágrimas rolarem pela face para o chão.

Despertou do breve e insustentável sono. A nesga de Sol ainda ali se encontrava, naquele lado do jardim, aconchegando-lhe o banco ao corpo. Olhou em redor e contemplou cenários que conhecia de outro ângulo. Arrepiou-se… sentia como que o olhar de alguém cravado nele, do alto de uma varanda com as portadas abertas. Levantou a cabeça e lá estava ela: a sua casa, a sua varanda vazia com as portadas cerradas. Ninguém o observava mas ele sentia-a; ela estava lá, sorrindo de quem estava no jardim e acompanhando os movimentos de cada um. Talvez o estivesse vendo, quem sabe…

Não sentindo nenhuma felicidade na felicidade que via à sua volta, parou no tempo e assim ficou, de olhos abertos, durante muito tempo, vendo desfilar imagens atrás de imagens esfumando-se no pó dos dias, até chegarem àquele jardim. Já era tarde, mesmo para quem não tem pressa de viver, quando despertou desta ausência de vida. Olhou, uma vez mais para a varanda e, agora, sentia-a vazia. Que amargura sabê-la em casa e não a ver, precisar tanto dela e não a ter…

O jardim esvaziara-se de pessoas, as aves recolhiam-se e ele voltava a casa, penosamente.

Os dias seguintes foram todos iguais, apenas ele se alterava. Estava magro, os olhos escondiam-se atrás de olheiras enormes, começavam a faltar-lhe as forças e a sua aparência mostrava o desmazelo e a pouca consideração que ele tinha para consigo mesmo. Saía de casa para não estar em casa e cumpria o sofrido ritual de se arrastar para aquele banco do jardim, pois tinha a certeza que, daquela forma, estaria com ela: ela olharia para ele e ele sentiria esse olhar até cair no torpor do cansaço e fechar os olhos, como agora mesmo.

“Bom-dia, amigo! Dá licença que me sente?” – ouviu através do silêncio das pálpebras cerradas. Remexeu-se no lugar mas evitou responder àquela voz masculina cansada. Não queria ser incomodado no seu sofrimento, nem na extrema carência afectiva dos momentos em que a sentia observando-o.

Apesar de não ter respondido, os seus sentidos ficaram em alerta, tentando aperceber-se de movimentos e sons. Os pombos, que geralmente, por ali eram vizinhos à distância, aproximaram-se amigáveis, assim que o homem se sentou, ligeiramente afastado de si. À chegada destes pombos, correspondeu a chegada de um enorme bando de outros que, não conseguindo perceber como, se tinham apercebido que havia comida para ser distribuída. Quase mecanicamente, o estranho foi atirando migalhas de pão para o ar, que os pombos disputavam, enquanto outros esvoaçavam directamente para as suas mãos. Não durou muito tempo, até terminar o manjar. Uma vez mais, sem ele perceber como, os pombos voaram para outros pontos do jardim onde havia mais gente a alimentá-los. Ele conhecia estes gestos de cor e, suspeitava, que seria capaz de reconhecer as pessoas os faziam. Olhou disfarçadamente para a varanda e ela lá continuava, triste e enlevada, fixando-o. Baixou, de novo, o olhar desarmado.

O estranho, depois de repartir o pão pelos ansiosos pombos, retirou um livro de um saco de plástico e abrindo-o, de par em par, retirou de lá uma folha ligeiramente perfumada, cujo aroma ele sorveu docemente, e começou a ler tremulamente:

“Alma minha, gentil, que te partiste
tão cedo desta vida descontente,
repousa lá no Céu, eternamente,
e viva eu, cá na Terra, sempre triste…”.

Aquele poema! Aquele era o seu poema! Ela adorava aquele soneto de Camões, declamado por ele, embevecido e recompensado com a sua alegria! Como era possível, ali e naquele momento, alguém que ele não conhecia, estar a ler, em voz alta, o poema que era só dela e que só ele sabia fazê-la feliz quando o lia?…

Permaneceu imóvel, hirto de espanto e expectante, até às suas últimas palavras

“Roga a Deus, que teus anos encurtou,
que tão cedo de cá me leve a ver-te,
quão cedo de meus olhos te levou”

e, quase, que a ouvia, no final dizer: “És o meu amor! Sou tão feliz! Quero viver feliz, contigo a meu lado, para sempre!” e ele achava que a tinha feito sempre muito feliz. Para contrariar essa felicidade total, ele tinha cá ficado, só e amargurado…

Após a leitura do soneto, solenemente, o estranho beijou o pedaço de papel e guardou-o entre as páginas do livro que guardava no saco de plástico, suspirou solidão e, com um cerrar de dentes, começou a ler, apenas para ele, desta vez, o livro de crónicas magnífico, pela crua realidade e humanismo, intitulado “Gente da terceira classe”. O tempo escorria pelas frestas da sua roupa e, através delas, tentava identificar aquele estranho sujeito, a quem os pombos conheciam e as palavras lhe soavam tão bem! O ângulo de visão não era muito favorável e, por enquanto, também ele não se queria mostrar interessado nem denunciar a sua curiosidade. O silêncio continuava até que o estranho homem, com gestos cansados e pausados, fechou o livro, guardou-o no saco de plástico, levantou-se e encaminhou-se pesadamente para uma das saídas do jardim. Ainda não tinha dado dois passos e, como se tivesse esquecido de alguma coisa, parou, virou-se um pouco para trás e despediu-se: “Até amanhã, amigo!”. Não esperando por resposta, continuou o lento caminhar e saiu do jardim.

Aquele dia tornara-se diferente! Havia como que uma mensagem indelével mas, ainda, hermética, nos acontecimentos daquele dia que ele sentia que existia para ele. Estava na hora de voltar a casa. Olhou, novamente, para a varanda e achou que havia um sorriso misterioso na única varanda com as portadas fechadas do prédio onde morava. Estava hesitante e algo confuso. Decidiu encaminhar-se para casa, pois a ausência de Sol também assim o aconselhava.

O dia seguinte amanheceu mais cedo e mais cedo se dirigiu para aquele banco do jardim. Desta vez, resolveu permanecer desperto e ansioso. Olhou, repetidamente, e vezes sem conta, ora para o relógio, ora para a varanda, que continuava de portadas fechadas. Havia uma secreta esperança de reconhecer, naquele homem, alguém que eles identificassem, pelas secretas e íntimas observações que antes tinham efectuado às pessoas que frequentavam aquele local. O tempo passava e a expectativa dava lugar a um frustrante vazio. Afinal, nada se tinha passado de especial para além de um mero e enorme acaso… desiludido, voltou à sua posição abatida.

“ Bom-dia, amigo! Dá licença que me sente?” – O seu corpo estremeceu e criticou-se por não se ter apercebido da chegada do estranho ser. Ia para responder, desta vez, mas a sua voz foi instantaneamente abafada pelo ruído do bater de dezenas de pombos que davam as boas-vindas ao visitante amigo. Reergueu-se no lugar e pode constatar que todo o banco onde estavam sentados era uma simples nuvem de asas em constante movimento, na ânsia de apanhar os pedaços de pão que o homem tinha nas mãos e que começava a distribuir. Pode, finalmente, observar a face daquele sujeito, que retribuiu o olhar e lhe dirigiu um sorriso afável mas dorido, acenando a cabeça em jeito de cumprimento. Correspondendo a este aceno, ficou admirando a amizade com que o homem e as aves se relacionavam. Parecia tudo muito simples: bastava dar sem esperar receber e ter confiança total, de um lado e do outro. Antes de distribuir todo o pão que tinha, o estranho ofereceu-lhe uma mão-cheia de pedaços, para ele partilhar da dádiva aos pombos mas ele recusou agradecendo com palavras que não se ouviram.

Assim como chegaram, também os pombos partiram e pelas mesmas razões. O banco ficou com dois homens que não se conheciam, mas que comunhavam das mesmas dores, sem o saberem. Após alguma hesitação inicial, o recém-chegado deu início ao seu ritual: retirou o livro de crónicas do saco de plástico, abriu de par em par as páginas do livro, segurou religiosamente o pedaço de papel levemente perfumado, encostou-o com suavidade ao rosto, absorvendo o seu aroma e começou a ler:

“Alma minha, gentil, que te partiste
tão cedo desta vida descontente,
repousa lá no Céu, eternamente,
e viva eu, cá na Terra, sempre triste…”.

Sem se deter nem ser interrompido, por um instante que fosse, bebeu as palavras até ao último gole:

“Roga a Deus, que teus anos encurtou,
que tão cedo de cá me leve a ver-te,
quão cedo de meus olhos te levou”

Após a leitura, beijou com amor o papel e guardou-o entre as mesmas páginas. Abriu o livro na marcação do ponto em que ficara no dia anterior e começou a entranhar-se na viagem do autor daquelas crónicas. Não demorou muito tempo na sua leitura, pois sentia que o companheiro de banco observava cada gesto que efectuava. Voltando-se para ele, perguntou-lhe: “Estou a aborrecê-lo, amigo?”. Este, apanhado de surpresa, pela pergunta e pela amabilidade com que fora realizada, gaguejou, tartamudeou, disse qualquer coisa que nenhum dos dois entendeu e calou-se, algo embaraçado. Era notório que ele já não dialogava com alguém fazia muito tempo! Por fim, respondeu: “Não, amigo, não me aborrece nada; apenas me fez reviver alguns momentos bons que deixei de ter, nada mais…”. “Compreendo bem, acredite!” – respondeu o homem.

Incapazes de prolongar a conversa, cada um continuou com o que estava a fazer, até que o Sol os convidou a regressar a casa. “Até amanhã, amigo!”, ouviu o homem a dizer, antes de se afastar. Desta vez, retribuiu a saudação e pareceu-lhe que ambos tinham saboreado bem aquela pequena troca de palavras. “Amanhã será novo dia” – pensou, antes de olhar para a sua varanda. Sentia-se com mais forças, as pernas estavam a reagir melhor e o caminhar tornara-se mais enérgico. “Até amanhã!” – despediu-se ele do jardim.

Os dias que se seguiram foram passados com mais ânimo, à medida que os homens se iam conhecendo melhor. A vida não voltara a ser a mesma de tempos felizes, nem as ausências foram preenchidas mas acabaram por chegar à conclusão que estavam os dois a precisar de uma boa amizade, como forma de poderem ultrapassar melhor as dolorosas recordações e os vazios que a vida lhes tinha entregado. Afinal, ele tinha a certeza que conhecia aquele homem: do alto da sua varanda, de portadas abertas à felicidade, ele a sua amada mulher tinham observado, imensas vezes, aquele casal chegar, de mão na mão, sentarem-se naquele mesmo banco e, o mesmo ritual de agora, repetir-se vezes sem conta! Ele só não sabia que aquele homem lia aquele mesmo poema, em honra à esposa que lhe falecera, cega pelo agudizar da doença… Tal como a sua mulher, também ela adorava poesia e, especialmente, os sonetos de Camões; daí que o seu novo amigo lesse todos os dias, naquele local, aquele poema de saudade e de amor, lembrando quem tanto amara!

Finalmente, as portadas do quarto que abriam para a varanda de onde se avistava o banco do jardim onde, agora, ele se sentava olhando essas mesmas portadas, foram abertas, de par em par, como as folhas do livro onde o amigo guardava o pedaço de papel embebido no perfume que a esposa mais gostava de usar. O Sol recomeçou, assim, a aquecer o leito por detrás das portadas daquele quarto, embora ele nunca mais tivesse conseguido dormir nele. Agora, também ele transportava consigo o livro de poemas que tinha estado esquecido em cima da sua mesa-de-cabeceira e, à vez, cada um deles lia primeiro um poema dedicado às suas companheiras de sempre. Sabia bem, aliviava, comungava-se a solidão e partilhavam-se as dores. Após as leituras dos poemas, já não se liam livros mas, na sua vez, falava-se da história de cada, dos planos concretizados e dos que ficaram por fazer, dos filhos e da ausência deles e, até, por vezes, de futebol!

Já sabiam muito da vida de cada um, excepto o nome. Nunca tinham sentido a necessidade de se tratarem pelo nome, eram simplesmente AMIGOS e, isso, chegava! “Bom-dia, amigo!” – e, desta forma, se saudavam, pela manhã. Falavam dos poemas que haveriam, ainda, de ler e da vida feliz que tinham tido outrora. Os pombos passaram a ter mais pão para comer e, como consequência natural, mais pombos apareceram. “Quando um de nós não vier, o outro deve lembrar que há sempre um amanhã para viver, honrando quem nos fez felizes!” – tinha dito um deles. “Até amanhã, amigo!” – Assim se despediam, depois de combinarem encontrar-se no mesmo local no dia seguinte. E, assim, os dias se sucediam, preenchendo e sendo preenchidos, um após outro, como as folhas das árvores iam preenchendo os caminhos do jardim, num sinal prematuro da chegada do Outono. As árvores iriam ficar desprotegidas, à mercê das intempéries e o jardim iria ficar numa espécie de casulo, hibernando, até que a Primavera anunciasse novo ciclo de vida. Seria a Natureza a revelar-se no seu mais elevado esplendor! A conversa tinha ficado por aqui e seria a vez de ele ler primeiro o poema preferido da esposa.

No entanto, o dia seguinte, desta vez, foi, apenas, outro dia. O amigo que lia poemas no jardim não apareceu. Não voltou a aparecer, soçobrou ao Outono e marcou encontro com a companheira, levando com ele um pedaço de papel perfumado com um soneto de amor eterno inscrito. Estava, de novo, só, sujeito aos frios da solidão e ao peso dos silêncios.

Quando, por fim, a Primavera se anunciou, os primeiros raios de Sol pousaram, de mansinho, nas portadas da varanda, que se abriram de par em par para o jardim que ressuscitava de vida, tornando-se no anfitrião desejado e apetecível para gente e outros seres, que se espalhavam e se encontravam, com os outros e com eles próprios. Depois de arrumar os poucos haveres fora do lugar e engolir qualquer coisa para sustentar o corpo, pegou no livro de poemas guardado cuidadosamente na estante da sua sala, desde o Outono anterior e saiu para a rua.

Entrou resoluto pelo jardim, olhou em volta e verificou que todos os bancos já estavam ocupados, àquela hora. Aproximou-se do seu banco. A um dos extremos, estava um homem com a cabeça recostada no antebraço que deslizara para a cabeceira das tábuas. Podia dizer-se que estava ausente, sentindo-se como que abandonado, amargurado com a vida, triste e só. Acercou-se do banco e, polidamente, perguntou: “Bom-dia, amigo! Dá licença que me sente?”. O outro homem remexeu-se mas nada disse, como se tentasse evitar responder àquela voz. Talvez não quisesse ser incomodado no seu sofrimento. De forma cuidadosa, sentou-se. Os pombos, como que adivinhando a sua presença, começaram a chegar em bandos e foram brindados por pedaços de pão que ele tinha trazido. Depois, perante o silêncio da resposta que ele calculava ainda não aparecer, por enquanto, tirou um livro de dentro do saco de plástico, abriu as folhas de par em par, pegou num pedaço de papel que embebera no perfume preferido da companheira, encostou-o com suavidade ao rosto, absorvendo o seu aroma e começou a ler:

“Alma minha, gentil, que te partiste
tão cedo desta vida descontente,
repousa lá no Céu, eternamente,
e viva eu, cá na Terra, sempre triste…”.

Sem se deter nem ser interrompido, por um instante que fosse, bebeu as palavras até ao último gole:

“Roga a Deus, que teus anos encurtou,
que tão cedo de cá me leve a ver-te,
quão cedo de meus olhos te levou”

Depois de beijar o pedaço de papel sagrado, guardou o poema nas mesmas páginas do livro, com toda a gentileza, e começou a ler o livro que o amigo lhe recomendara. Quando o Sol o convidou a ir embora, levantou-se calmamente e dirigiu-se para uma das saídas do jardim. Ainda não tinha dado dois passos, voltou-se ligeiramente para o lugar onde o homem infeliz se encontrava e despediu-se: “Até amanhã, amigo!”. Não esperando por resposta, continuou o lento caminhar, olhou sorridente para a sua varanda e saiu do jardim. Há sempre um amanhã para viver!


Foge comigo, Maria!

CAPÍTULO I

“O sonho comanda a vida!”. Assim declama o poeta e assim parece ser mas o doce sabor da fantasia dificulta imenso a percepção da realidade e há quem não consiga desligar-se a tempo do embalo sonolento que a imaginação produz.

Há quem se negue a valorizar demasiado um sonho, embora o possa saborear, por achar que se deve ter sempre os pés bem assentes no chão mas há quem viva para ele, com a fé própria de quem nele acredita religiosamente. Destes últimos, há quem se encontre num sonho, quem consiga traduzir a metáfora e ser feliz, mas também há os que nele se perdem, embarcando numa viagem de esperança sem nunca chegarem a ver o sonho realizado.

Há quem sonhe com os olhos abertos, há quem sonhe, apenas, com os olhos fechados mas há, ainda, aqueles que não conseguem aperceber-se se estão acordados ou, simplesmente, dormindo e vagueiam no sonho ao sabor daquilo que gostariam que a realidade fosse. E sonham, sonham, sonham…

Mais uma manhã esplendorosa nascia nos raios de luz que, languidamente, na cama, se espreguiçavam nos contornos dos dois corpos, côncavo e convexo, como um puzzle perfeito.

– Bom-dia, Maria! – saudava-lhe a voz terna do companheiro de sempre, enquanto ela saboreava o momento e o beijo, cerrando as pálpebras suavemente à luz que lhe acariciava o olhar.

Após um suspirar, quase inaudível, respondeu-lhe com a simplicidade de quem saboreia a arte de ser feliz: – Bom-dia… que bem que dormi, esta noite. E tu? – voltando-se para ele e olhando o desarrumado lençol que cobria o corpo dele. – Não me parece que tenha sido uma noite calma…

– A quem o dizes! Até parece que dormiu aqui um cão, com tanta volta que dei! Ainda bem que não te acordei, linda mulher! – respondeu-lhe, tentando dar um tom engraçado às palavras.

Maria já estava habituada à forma de ser do marido e adorava-o, divertido e galante. Achava que os piropos que ele lhe lançava eram, na sua maioria, exagerados mas ficava sempre lisonjeada e agradada com as suas palavras. O companheiro não era nenhuma estrela de cinema, ela sabia-o bem, mas era cintilante como se fosse uma e ele tudo fazia para o mostrar, para além de ser muito bom publicitário daquilo que tinha de melhor! – Não dormiste bem porquê? O que te preocupa?

Ele olhou-a bem no fundo dos olhos que tanto admirava. Hesitou. Perante a curiosidade crescente de Maria, disse: – Vou primeiro preparar o nosso pequeno-almoço. Torradinha bem barrada e doiradinha, como tu gostas! Depois… bem, depois falaremos.

Saíram da cama e vestiram os roupões, à velocidade de cruzeiro, para saborear melhor a vida, como ele dizia. Passaram os olhos pela fotografia de casamento, emoldurada e pousada religiosamente junto à caixinha de música que ele lhe oferecera, por um aniversário que já nenhum dos dois recordava.

Antes, ainda, vinha a higiene diária de cada um, à vez; Maria era a primeira e, depois, o companheiro. Não havia imposição, de parte a parte, nem tentativas de proteccionismo, nem submissão: ambos sabiam isto e os dois assim viviam felizes.

A primeira refeição do dia decorreu como sempre. Bem… como quase sempre, porque desta vez haveria uma conversa para degustar, um tema para pensar, um assunto que ele não sabia como começar e que ela, embora curiosa, não se atrevia a imaginar.

Por fim, concluído o repasto, era tempo de falar. Tempo de expor as fervilhantes ideias que não o deixavam dormir em paz.

– Tenho andado aqui a pensar, metido comigo mesmo, numa ideia que não me sai da cabeça. – assim começou ele, com um ar mais sério do que lhe era habitual.

Maria olhou-o atentamente e surpreendeu-a a determinação e a vivacidade com que ele se lhe dirigia. Não sabia bem do que se tratava mas sentia que seria algo mesmo muito importante para ele. Ou, muito provavelmente, para ambos. Por esta razão, decidiu não o interromper e anuiu com a cabeça, como que querendo dizer que lhe estava a prestar toda a atenção.

E ele continuou. Apesar de algo nervoso, continuou: – Temos o filho criado, minimamente independente e casado. Chegou a altura de o nosso filho viver a vida da forma que entender, seja lá o que isso for. A casa cresceu, tornou-se enorme e nós aqui estamos, ainda com alguma saúde. Pouco temos que fazer, para além de regar as nossas plantas, ler os nossos livros e ver na televisão as notícias que correm mundo. Toda esta rotina, passada contigo, é muito deliciosa mas… o tempo voa e prega-nos partidas quando enfrentamos os espelhos da casa e, tenho que confessar-te, esta visão perturba-me um pouco.

Maria estava hipnotizada. Queria antever cada palavra seguinte, construir imagem a imagem, através dos sons que lhe entravam pelos poros dos sentidos, a ideia, o plano, fosse o que fosse, mas não conseguia descobrir a imagem final.

Ele parou de falar, por pouco tempo. Precisava de reagrupar todo o turbilhão de palavras que fora coleccionando nos últimos tempos e que tinha guardado para este momento. E elas não paravam de surgir: – Porque é que não ganhamos coragem e, enquanto pudemos, vamos para outro lugar, conhecer novas pessoas, fazer outras amizades, viajar, descansar ao sabor do momento e da vontade? Porque não?! O que achas desta ideia tresloucadamente juvenil?

Ela olhou-o, entre surpresa e temerosa, e sussurrou: – Então, e o nosso filho? Está no princípio da vida, está a percorrer a fase de aprendizagem em ser adulto; ele pode, ainda, precisar de nós.

– O nosso filho sempre se mostrou responsável, está bem colocado, tem uma companheira que o ama e, caramba!, hoje em dia existem telemóveis e transportes rápidos e seguros – respondeu-lhe o amor de toda a vida. E, sem se deter, continuou: – Ouve, Maria, merecemos ter uma vida só para os dois, enquanto temos forças para isso. Demos tudo o que podíamos dar, durante toda a nossa vida! Chegou, agora, o nosso momento!

– E os netos? Eu gostaria de estar por perto deles, quando aparecerem. Gostaria de dar o que não pude dar, de ser de novo tudo aquilo que sempre tentei ser, de sentir o cheiro e o toque, e o olhar fixo no meu, e os primeiros sons dos filhos do nosso filho… – quase sem respirar, de um fôlego só, Maria acabara de antever os próximos anos e sentia-se maravilhosamente bem.

– E tu achas que eu não quero o mesmo que tu? Claro que quero tudo isso que disseste, também, e compreendo muito bem o que sentes! – retorquiu ele.

Depois de uma pausa, que serviu para melhor pensarem, ambos sorriram, como se ambos cedessem algo ao outro. Sempre tinha sido assim. Eram diferentes e essa mesma diferença é que os aproximava. Pelo respeito, pela amizade, pelo amor e por tudo aquilo pela qual tinham vivido e viveriam ainda.

– Então, e se fossemos para outro lugar, temporariamente, apenas, até, digamos, sermos realmente necessários ou até nascer o nosso primeiro neto? Podíamos viver perto de uma praia, aquecer estes ossos friorentos! – avançou ele com a proposta que, acreditava, ser a melhor para os dois. Para todos.

– Acho que gostaria de viajar e descontrair um pouco, embora as nossas reformas comecem a ficar uma miséria – aquiesceu ela, com um brilhozinho nos olhos, como se já estivesse a viver esses momentos futuros.

– De facto, a viagem não poderá ser para muito longe mas poderemos morar numa casinha simples e pequena, que dê para nós e as poucas coisas que precisamos. – e, com um sorriso maroto e traquina, desafiou-a: – Foge comigo, Maria!

Maria sentiu-se atrapalhada; riu, sorriu, corou como uma menina casadoira, tremeu-lhe ao de leve os joelhos, colados pela transpiração suave causada pelo nervoso miudinho, e com o lábio inferior algo trémulo mas totalmente decidida respondeu-lhe com a doçura própria que o olhar malandreco dele merecia: – Eu vou! É claro que fujo contigo para onde quiseres! Irei contigo para onde me levares, pois eu sei que serei feliz esteja onde estiver, desde que esteja contigo!

Um terno abraço selou aquele momento e, com a cabeça dela aninhada no seu peito, ele perguntou-lhe: – E para onde queres ir? Queres fugir comigo, para onde?

 CAPÍTULO II

Dizem que todas as pessoas sonham, independentemente das condições e das pessoas e assim parece ser. Contudo, umas têm suaves alvoradas, desfrutadas ao longo da vida, enquanto outras têm manhãs para as quais prefeririam não acordar.

– Para a minha terra! Para a minha terra! – assim acordou Maria, naquela manhã, num implorador murmúrio.

Na penumbra do quarto, na mesma cama que ela, respondeu-lhe uma voz mal-humorada: – Já nem se pode, pelo menos, dormir? Lá estás tu, outra vez, com esses pesadelos de porcaria! Tens que ir ao médico ou, então, é melhor passares a dormir no divã da sala. Que raio de coisa é que sonhaste tu, desta vez, mulher? Pode saber-se?!

– Sonhei… sonhei que eras gentil comigo, que eras meu amigo, que me respeitavas e que querias fugir comigo, de novo, mas que agora, no fim dos nossos anos, seria para me fazeres feliz. E eu… eu aceitei, novamente. Voltei a acreditar mas, desta vez, queria que me levasses para a minha terra, que me devolvesses ao calor do meu ninho…

– Para a tua terra?! Ah! Ah! – interrompeu-a ele, rindo sarcasticamente da candura com que Maria ainda falava. – Para quê? Para quem? Já lá não vive ninguém que te conheça e se houvesse alguém certamente que te faria uma festa à chegada! Se lá não ficaste foi porque não o quiseste. Ficaste cheia de medo que eu quisesse outra ou que os teus pais viessem a saber o que já tínhamos feito, não foi?!… Linda menina que eles tinham criado! Ah! Ah! Ah!

– Para quê…?! Questionou-se ela própria muito mais do que continuou a conversa. – Para quê? Para poder recomeçar o sonho! Para poder… – reparou que ele já ali não estava e que a “conversa” tinha terminado, mesmo antes de ter começado. Tal como o seu sonho…

O homem levantara-se, sem grandes preparos, com um equilíbrio instável, pendente para o seu lado direito, e dirigira-se, tão apressadamente quanto o podia, à casa de banho, esquecendo as muletas junto à cama. Fechou a porta, que a necessidade era grande, como se apenas ele ali morasse, e passado pouco tempo vociferou uma imprecação: – Porra, p’ra isto! Tenho a fralda toda mijada, outra vez!

Na cama, sentada num desconsolo eterno, olhando de viés a fotografia de casal, em tons cinzentos, Maria continuou o triste monólogo: – Para quê? Para voltar a acreditar. Acreditar em alguém e nas suas promessas. Acreditar em que poderia um dia ser feliz, realmente. Acreditar no sonho ou na possibilidade de mo poderem devolver…

Calou-se. Fechou-se em si mesma, como se quisesse reunir toda a energia do mundo num ponto só. E conseguiu. Num impulso inusitado nela, levantou-se da cama decidida, de uma vez por todas!

– Vai mas é preparar o pequeno-almoço e deixa-te de lamúrias! – exclamou ele, depois de ter accionado o autoclismo, nas profundezas dos sanitários. E continuou: – Devias dar-te por muito feliz! Tiveste muita sorte em eu ser como sou! Foste tu que vieste comigo mas raparigas não me faltavam, ouviste?!!! Nunca te obriguei a nada!

Não! Ele não a tinha obrigado a nada. Tinha feito muito pior! Tinha-a iludido, pois tinha-se mostrado alguém que nunca chegou a ser; tinha enganado os seus pais, mostrando-se amigo e interessado, pretendendo apenas roubar o fruto sagrado e a honra familiar; tinha feitos promessas que, soube-o pouco depois, seriam irrealizáveis! Tinha-lhe violentado os sonhos de menina, substituindo-os por algo tão brilhantemente falso, ao ponto de a ter cegado. Tinha-a trocado, inúmeras vezes, por outras mulheres, tornava-se ausente quando mais ela dele precisava, não tinha tido um pouco de ternura, sequer, e jamais a conseguira fazer feliz!

Não! Maria, de facto, não pretendia voltar à sua terra; ela queria mesmo era ter mais uma oportunidade para ser feliz! Onde quer que fosse!

– Foge comigo, Maria!… – resmungava ele, tentando levantar-se da sanita. – Se fosse agora, não me apanhavas tu, não! Não sei do que te queixas, tens tudo… ai, a minha perna, ai!

Um som surdo de um corpo contra o chão ouviu-se na casa.

– Anda cá, Maria! Ajuda-me a levantar! Maria! Maria! Raios partam a mulher! Não me ouves? Anda cá, já! Maria! Mariiiiiiiiaaaaaaaaa…..

O silêncio impôs-se. De um lado, o medo da solidão cerrou os sons na garganta apertada; do outro lado, o cansaço da solidão deu asas a um novo sonho. Seria tarde demais, para ambos, ou apenas para um deles?

Fosse como fosse, dizem que nunca é tarde para sonhar em ser feliz! Dizem e assim parece ser.

Maria, mesmo ainda na soleira da porta da rua, com uma malinha diminuta nas mãos, já nada ouvia do que se passava dentro de casa! Maria já só ouvia dentro de si mesma: – Foge, Maria! Foge!!!

 CAPÍTULO III

Sim! Há pessoas que conseguem libertar-se das prisões que elas próprias constroem à sua volta mas há outras pessoas que ficam irremediavelmente agarradas àquilo a que erradamente chamaram sonho e vivem toda a sua vida como se acreditassem que existe um destino pré-determinado, apenas para elas, e que não poderiam ser outra coisa senão infelizes…

– Diz lá, homem. O que é que te aconteceu? Caíste, outra vez? Vá lá, dá-me cá a mão para eu te ajudar a levantar. É impressão minha ou estiveste a chorar? É água? Pois é, é água…– e Maria assim continuou.


Até amanhã!

1279-reflection-1920x1200-digital-art-wallpaperAssim que chegava perto da porta de entrada da casa, empurrava-a e ela cedia, como se já esperasse por ele, dócil e acolhedora amiga. Nunca se sabia se ele lhe ficava grato ou não, mas entrava de rompante na casa que, também ela, se tornava anfitriã e caixa-forte das suas vontades e desejos. Invadia-a, corria-a como um rio e desaguava sempre onde se encontrava a deusa da sua vida! Entusiasmado, tinha que se obrigar a estancar os passos e ali ficava parado, hirto, quase marcial, expectante, produzindo alguns sons em rituais rotineiros como se quisesse que ela lhe desse atenção, olhasse para ele e o perdoasse por ser tão impetuoso…!

A sua musa, a sua tudo, já tinha sentido a sua presença mas também esperava, desnecessariamente, ela sabia, que um dia ele se dignasse a dar-lhe atenção, a ela que nunca negara essa deferência, a ele que sempre a tivera. Mas, de costas, para ele, ela apenas sorria, adivinhando-lhe a ansiedade e fazendo a espera acontecer.

Na cozinha, onde se encontravam quase sempre à mesma hora, o aroma culinário desprendia-se em fumegante dança, inebriando os mais sensíveis sentidos, Nesse ambiente idílico, ali estavam os dois, agora olhando um para o outro, olhos nos olhos, sem nada dizerem, apesar do tanto que haveria para falar. Sabiam de tudo isto, pelo olhar reprovador daquele ser quase divino, a ele dirigido e, também, pelo próprio olhar dele, que sentia que o mundo poderia acabar a qualquer momento e, assim, não se atrevia a fazer fosse o que fosse. Baixava os olhos, de vez em quando mas, como ser eternamente esperançado, retornava o olhar para ela quase implorando perdão e o ciclo recomeçava.

Depois de algum tempo, envolvidos pelos agradáveis temperos que as partículas de água vaporizadas espalhavam por toda a casa agora, ela aceitava-o em seus braços abertos, como uma mãe feliz que tudo perdoa! E ele não se fazia rogado! Corria-lhe para os braços e encostavam respiração a respiração, transferindo felicidade e paz, de um para o outro!

Sabiam um do outro como ninguém! Conheciam-se melhor do que qualquer outro amigo ou familiar e eram companheiros um do outro, até que a vida os separasse! Viviam felizes!

O abraço durava uma eternidade de momentos ternos, partilhada a dois e apenas terminava para que os dois provassem daquela maravilhosa iguaria que as panelas e os tachos guardavam como tesouros de alquimistas, a partir de receitas zelosamente guardadas pelos melhores alfarrabistas, sagrados e únicos, apenas deles!

Geralmente, esta prova não durava muito tempo… afinal, era apenas para degustar e entender se tudo estaria na conta certa! Apenas o tempo suficiente para se preparar a mesa para a refeição principal, para o jantar, e para guarnecer os pratos de cada um.

Aqueles momentos de repasto eram religiosamente vividos em silêncio respeitoso, até que ele voltava a impacientar-se, como se se enervasse, ou a sua forma de ser o impelisse a ausentar-se da refeição e saísse para a rua, deixando-a de novo órfã dele… ela não gostava muito que aquilo acontecesse mas respeitava-o e percebia que teriam que haver razões que o levavam a agir daquela forma.

Permitiam-se, estas idas e voltas, estas chegadas e partidas, estas solidões temporárias, sabendo que um sem o outro não sabiam viver e todos estes sobressaltos nada tinham de importante na sua relação e eram assim compreendidos, respeitados e até desejados. Dir-se-ia que era mesmo assim que eles sabiam que teriam que viver. No aconchego das diferenças entre eles, sentiam que ficavam mais fortes e próximos do que antes!

Ela, a deusa do lar, a fada única daquele castelo, lá ficava lavando a loiça, arrumando a mesa e o resto que havia para fazer em casa, entremeando tudo com a atenção fugidia que ia dando à novela que corria na televisão àquela hora.

Quanto a ele, lá saía para o mundo, liberto de correntes, livre, eufórico e de barriga cheia! Ia encontrando amigos e amigas com quem se relacionava em calorosas trocas de ideias, até mesmo junto à casa! Ela ouvia-o, de vez em quando, e sorria conhecedora do génio do seu companheiro.

Sem falhar, com o relógio biológico acertado como um aparelho de precisão suíço, à mesma hora, todas as santas noites, assim que ela ficava despachada das lides domésticas, ele devia chegar à conclusão de que ambos precisavam, de novo, um do outro e retornava.

A cena repetia-se e a porta entreaberta mostrava-se sempre amiga e recebia-o. Ele, então, entrava, já menos alvoraçado e seguia o rasto da luz acesa na sala de estar, onde a televisão já passava outra novela e a sua querida o esperava, sorridente, sentada no sofá.

Ele, novamente, não se fazia rogado e aceitava os braços acolhedores, abertos, de par em par e tão convidativos, como a porta de entrada da casa sempre o era. Saltava para o sofá, ao lado da dona, bem encostadinhos, e adormeciam os dois, até começar uma terceira novela… depois, a noite, a profunda noite, acolhia os dois amigos e companheiros.

– Até amanhã, meu amigo! – despedia-se a sua tudo. E, no tapete do quarto ficava ele aninhado, olhando por ela e para ela, enquanto ela abraçava o vazio da cama, para ele sorria e assim adormecia…