Todos os dias, pela manhã, o jardim tornava-se o anfitrião desejado e apetecível para gente e outros seres. Como um processo natural,
recomeçava todos os dias a roda-viva entre crianças a caminho da escola que arrastavam pais e avós para os baloiços e para o lago, adultos apressados sem tempo para admirarem a paisagem
exótica e o odor que se desprendia do alto arvoredo, casais de namorados – amantes da pessoa amada –, passarada num chilreio e esvoaçar contínuo, pombos, muitos pombos, rondando os bancos
espalhados pelo jardim, pequenos roedores, rivais das aves, em busca de sementes ou migalhas perdidas e… velhos arrastando o corpo para o seu banco preferido ou, simplesmente, para aquele que
ainda não estivesse ocupado. O dia nascia para que os seus seres renascessem ou, apenas, continuassem a sua existência.
Aquele era, de facto, um jardim admirável! Ao centro, ponto onde todos os caminhos se cruzavam, tinha o parque destinado às crianças, e
era, talvez por isso, o lugar mais ocupado e onde se focavam mais as atenções. A rodear este local, em forma concêntrica, riscados pelos tais caminhos de acesso e de passagem, existiam
canteiros de flores cobertos de relva aparada e viçosa, sempre muito bem tratados. No topo mais perto do caminho principal, numa área aberta e a fazer fronteira com o passeio, protegido por
outro canteiro de flores e relva entre algumas árvores, situava-se um pequeno lago, com uma ponte de madeira, de onde as pessoas admiravam o labor dos peixes em busca de alimento e do pão que
lhes atiravam para a água. Por fim, no topo oposto, debaixo de árvores frondosas e, muito provavelmente, também elas já centenárias, estavam dispostas em círculo algumas mesas e bancos de
pedra, que recebiam na sua sombra acolhedora os velhos que iam para lá passar o tempo a jogar cartas, dominó e damas e, ainda, outros velhos, que não intervinham: eram apenas espectadores,
como o terão sido sempre, na vida.
Já ali morava há muitos anos. A praceta, desde então, nada tinha mudado. Apenas o jardim se ia adaptando aos tempos mas, na sua
essência, acolhia o mesmo tipo de seres e era palco das mesmas actividades. Do alto da sua varanda, aberta para a praceta onde se desenhara o jardim, mesmo antes de ele o conhecer, tinha ele
passado os mais belos momentos da sua vida, com o seu amor, a mulher de sempre, ela, a única. A varanda protegia, por detrás das portadas de madeira, o leito acolhedor dos seus corpos sempre
insatisfeitos, na infância do amor, e extenuados, nos derradeiros capítulos da vida. Nos últimos tempos, pela manhãzinha, vestiam-se o mais rápido possível que os seus lentos movimentos
permitiam e lá ia ele fazer uma torradinha e aquecer uma caneca de leite para os dois, sempre deliciado e prazenteiro, enquanto ela o esperava sentada numa cadeira de braços confortáveis.
Depois, ficavam com as portadas escancaradas à espera que os primeiros raios de Sol aparecessem e aquecessem as árvores, as aves e as pessoas que circulavam lá em baixo e os seus próprios
corpos de ossos cada dia mais frágeis. Passavam grande parte da manhã, vendo os movimentos dos outros, cochichando como dois adolescentes, lembrando segredos, sorrisos cúmplices e mãos dadas.
Os seus dedos afagavam-se como a cabelos de criança e os olhares meigos humedeciam-se agradecidos. Por vezes, ele pegava num livro de poemas que ela adorava e lia-lhe alguns dos sonetos que
sabia serem mais do seu agrado. Outras vezes, variava para obras de Balzac, que lhes enleava a alma em suspiros e romance. E os dias chegavam ao fim, como todos os dias, da mesma forma que as
suas histórias iriam brevemente terminar, e ele não sabia. Até um dia. Apesar de os últimos anos terem sido mais dolorosos, as primeiras horas do dia alimentavam-lhes, desta forma, a alma
para o resto dos seus dias.
Agora, já nada fazia sentido. Estava só e não tinha um pingo de coragem para abrir as portadas da varanda e olhar a felicidade dos
outros. Tinha perdido a vontade de rir e a sua cúmplice já não lhe recolhia as mãos nas suas mãos nem devolvia a ternura no olhar. Tinha perdido o hábito de fazer torradas, pela manhã, e o
seu corpo sentia a falta da sua metade, na metade ainda mais fria da cama do quarto dos hóspedes, que nunca existiram. Os livros de sonetos e os romances e contos da Comédia Humana de Balzac
repousavam esquecidos na mesinha-de-cabeceira, do lado dele, num quarto que permanecia fechado. Como ele…
Pensara, em tempos, que iria ser feliz para sempre, para toda a vida, mas enganara-se, pois havia mais vida para além do sempre. Os
espaços da casa estavam revestidos de recordações, de fotografias pelas paredes e molduras espalhadas por todos os móveis da casa, dos sons das rádio-novelas, que ela tanto gostava de ouvir,
e dos relatos de futebol ao domingo à tarde, que, compreensiva, ela tolerava. Ouviam-se, ainda, os passos das crianças, que já não eram crianças e que já não viviam ali há muito tempo e quase
sentia o respirar morno dela junto à sua cara nas noites dolorosas e mal dormidas passadas no quarto mais afastado do seu quarto. Percebera que não estava preparado para esta solidão…
Desceu a escada em direcção à rua, sem saber bem o que iria fazer. Deambulou pelas redondezas, tropeçando nos transeuntes
desinteressados, como um ébrio trôpego e sem destino. Com o olhar ausente, fixo no infinito da sua amargura, sem planos e sem vida, deu por si a entrar no jardim da praceta onde morava.
Passou pelo lago e parou na ponte, olhando os peixes que o olhavam momentaneamente mas logo avançavam para outras silhuetas que lhes atiravam pedaços de pão e restos de bolos secos. Tentou
sentir alegria ou alguma vontade em ficar a apreciar esta aparente idílica paisagem mas estava vazio e retirou-se. Achou que ninguém se tinha apercebido da sua presença. Arrastou os pés, que
lhe puxaram o corpo, para o centro do parque, onde havia um grande corrupio de crianças em alvoroço e de adultos despreocupados trocando palavras e conversas de ocasião. Não se deteve, olhou
à sua volta e encontrou, ainda um pouco afastado, um banco vazio onde descansava um raio de sol. Sentou-se, permitindo o breve afago solar, voltando-se de costas para o resto do banco e
recostando a cabeça no antebraço que deslizara para a cabeceira das tábuas. Fechou os olhos, por momentos. Sentiu-se mendigo e, desanimado, adormeceu sentindo as lágrimas rolarem pela face
para o chão.
Despertou do breve e insustentável sono. A nesga de Sol ainda ali se encontrava, naquele lado do jardim, aconchegando-lhe o banco ao
corpo. Olhou em redor e contemplou cenários que conhecia de outro ângulo. Arrepiou-se… sentia como que o olhar de alguém cravado nele, do alto de uma varanda com as portadas abertas. Levantou
a cabeça e lá estava ela: a sua casa, a sua varanda vazia com as portadas cerradas. Ninguém o observava mas ele sentia-a; ela estava lá, sorrindo de quem estava no jardim e acompanhando os
movimentos de cada um. Talvez o estivesse vendo, quem sabe…
Não sentindo nenhuma felicidade na felicidade que via à sua volta, parou no tempo e assim ficou, de olhos abertos, durante muito tempo,
vendo desfilar imagens atrás de imagens esfumando-se no pó dos dias, até chegarem àquele jardim. Já era tarde, mesmo para quem não tem pressa de viver, quando despertou desta ausência de
vida. Olhou, uma vez mais para a varanda e, agora, sentia-a vazia. Que amargura sabê-la em casa e não a ver, precisar tanto dela e não a ter…
O jardim esvaziara-se de pessoas, as aves recolhiam-se e ele voltava a casa, penosamente.
Os dias seguintes foram todos iguais, apenas ele se alterava. Estava magro, os olhos escondiam-se atrás de olheiras enormes, começavam a
faltar-lhe as forças e a sua aparência mostrava o desmazelo e a pouca consideração que ele tinha para consigo mesmo. Saía de casa para não estar em casa e cumpria o sofrido ritual de se
arrastar para aquele banco do jardim, pois tinha a certeza que, daquela forma, estaria com ela: ela olharia para ele e ele sentiria esse olhar até cair no torpor do cansaço e fechar os olhos,
como agora mesmo.
“Bom-dia, amigo! Dá licença que me sente?” – ouviu através do silêncio das pálpebras cerradas. Remexeu-se no lugar mas evitou responder
àquela voz masculina cansada. Não queria ser incomodado no seu sofrimento, nem na extrema carência afectiva dos momentos em que a sentia observando-o.
Apesar de não ter respondido, os seus sentidos ficaram em alerta, tentando aperceber-se de movimentos e sons. Os pombos, que geralmente,
por ali eram vizinhos à distância, aproximaram-se amigáveis, assim que o homem se sentou, ligeiramente afastado de si. À chegada destes pombos, correspondeu a chegada de um enorme bando de
outros que, não conseguindo perceber como, se tinham apercebido que havia comida para ser distribuída. Quase mecanicamente, o estranho foi atirando migalhas de pão para o ar, que os pombos
disputavam, enquanto outros esvoaçavam directamente para as suas mãos. Não durou muito tempo, até terminar o manjar. Uma vez mais, sem ele perceber como, os pombos voaram para outros pontos
do jardim onde havia mais gente a alimentá-los. Ele conhecia estes gestos de cor e, suspeitava, que seria capaz de reconhecer as pessoas os faziam. Olhou disfarçadamente para a varanda e ela
lá continuava, triste e enlevada, fixando-o. Baixou, de novo, o olhar desarmado.
O estranho, depois de repartir o pão pelos ansiosos pombos, retirou um livro de um saco de plástico e abrindo-o, de par em par, retirou
de lá uma folha ligeiramente perfumada, cujo aroma ele sorveu docemente, e começou a ler tremulamente:
“Alma minha, gentil, que te partiste
tão cedo desta vida descontente,
repousa lá no Céu, eternamente,
e viva eu, cá na Terra, sempre triste…”.
Aquele poema! Aquele era o seu poema! Ela adorava aquele soneto de Camões, declamado por ele, embevecido e recompensado com a sua
alegria! Como era possível, ali e naquele momento, alguém que ele não conhecia, estar a ler, em voz alta, o poema que era só dela e que só ele sabia fazê-la feliz quando o lia?…
Permaneceu imóvel, hirto de espanto e expectante, até às suas últimas palavras
“Roga a Deus, que teus anos encurtou,
que tão cedo de cá me leve a ver-te,
quão cedo de meus olhos te levou”
e, quase, que a ouvia, no final dizer: “És o meu amor! Sou tão feliz! Quero viver feliz, contigo a meu lado, para sempre!” e ele achava
que a tinha feito sempre muito feliz. Para contrariar essa felicidade total, ele tinha cá ficado, só e amargurado…
Após a leitura do soneto, solenemente, o estranho beijou o pedaço de papel e guardou-o entre as páginas do livro que guardava no saco de
plástico, suspirou solidão e, com um cerrar de dentes, começou a ler, apenas para ele, desta vez, o livro de crónicas magnífico, pela crua realidade e humanismo, intitulado “Gente da terceira
classe”. O tempo escorria pelas frestas da sua roupa e, através delas, tentava identificar aquele estranho sujeito, a quem os pombos conheciam e as palavras lhe soavam tão bem! O ângulo de
visão não era muito favorável e, por enquanto, também ele não se queria mostrar interessado nem denunciar a sua curiosidade. O silêncio continuava até que o estranho homem, com gestos
cansados e pausados, fechou o livro, guardou-o no saco de plástico, levantou-se e encaminhou-se pesadamente para uma das saídas do jardim. Ainda não tinha dado dois passos e, como se tivesse
esquecido de alguma coisa, parou, virou-se um pouco para trás e despediu-se: “Até amanhã, amigo!”. Não esperando por resposta, continuou o lento caminhar e saiu do jardim.
Aquele dia tornara-se diferente! Havia como que uma mensagem indelével mas, ainda, hermética, nos acontecimentos daquele dia que ele
sentia que existia para ele. Estava na hora de voltar a casa. Olhou, novamente, para a varanda e achou que havia um sorriso misterioso na única varanda com as portadas fechadas do prédio onde
morava. Estava hesitante e algo confuso. Decidiu encaminhar-se para casa, pois a ausência de Sol também assim o aconselhava.
O dia seguinte amanheceu mais cedo e mais cedo se dirigiu para aquele banco do jardim. Desta vez, resolveu permanecer desperto e
ansioso. Olhou, repetidamente, e vezes sem conta, ora para o relógio, ora para a varanda, que continuava de portadas fechadas. Havia uma secreta esperança de reconhecer, naquele homem, alguém
que eles identificassem, pelas secretas e íntimas observações que antes tinham efectuado às pessoas que frequentavam aquele local. O tempo passava e a expectativa dava lugar a um frustrante
vazio. Afinal, nada se tinha passado de especial para além de um mero e enorme acaso… desiludido, voltou à sua posição abatida.
“ Bom-dia, amigo! Dá licença que me sente?” – O seu corpo estremeceu e criticou-se por não se ter apercebido da chegada do estranho ser.
Ia para responder, desta vez, mas a sua voz foi instantaneamente abafada pelo ruído do bater de dezenas de pombos que davam as boas-vindas ao visitante amigo. Reergueu-se no lugar e pode
constatar que todo o banco onde estavam sentados era uma simples nuvem de asas em constante movimento, na ânsia de apanhar os pedaços de pão que o homem tinha nas mãos e que começava a
distribuir. Pode, finalmente, observar a face daquele sujeito, que retribuiu o olhar e lhe dirigiu um sorriso afável mas dorido, acenando a cabeça em jeito de cumprimento. Correspondendo a
este aceno, ficou admirando a amizade com que o homem e as aves se relacionavam. Parecia tudo muito simples: bastava dar sem esperar receber e ter confiança total, de um lado e do outro.
Antes de distribuir todo o pão que tinha, o estranho ofereceu-lhe uma mão-cheia de pedaços, para ele partilhar da dádiva aos pombos mas ele recusou agradecendo com palavras que não se
ouviram.
Assim como chegaram, também os pombos partiram e pelas mesmas razões. O banco ficou com dois homens que não se conheciam, mas que
comunhavam das mesmas dores, sem o saberem. Após alguma hesitação inicial, o recém-chegado deu início ao seu ritual: retirou o livro de crónicas do saco de plástico, abriu de par em par as
páginas do livro, segurou religiosamente o pedaço de papel levemente perfumado, encostou-o com suavidade ao rosto, absorvendo o seu aroma e começou a ler:
“Alma minha, gentil, que te partiste
tão cedo desta vida descontente,
repousa lá no Céu, eternamente,
e viva eu, cá na Terra, sempre triste…”.
Sem se deter nem ser interrompido, por um instante que fosse, bebeu as palavras até ao último gole:
“Roga a Deus, que teus anos encurtou,
que tão cedo de cá me leve a ver-te,
quão cedo de meus olhos te levou”
Após a leitura, beijou com amor o papel e guardou-o entre as mesmas páginas. Abriu o livro na marcação do ponto em que ficara no dia
anterior e começou a entranhar-se na viagem do autor daquelas crónicas. Não demorou muito tempo na sua leitura, pois sentia que o companheiro de banco observava cada gesto que efectuava.
Voltando-se para ele, perguntou-lhe: “Estou a aborrecê-lo, amigo?”. Este, apanhado de surpresa, pela pergunta e pela amabilidade com que fora realizada, gaguejou, tartamudeou, disse qualquer
coisa que nenhum dos dois entendeu e calou-se, algo embaraçado. Era notório que ele já não dialogava com alguém fazia muito tempo! Por fim, respondeu: “Não, amigo, não me aborrece nada;
apenas me fez reviver alguns momentos bons que deixei de ter, nada mais…”. “Compreendo bem, acredite!” – respondeu o homem.
Incapazes de prolongar a conversa, cada um continuou com o que estava a fazer, até que o Sol os convidou a regressar a casa. “Até
amanhã, amigo!”, ouviu o homem a dizer, antes de se afastar. Desta vez, retribuiu a saudação e pareceu-lhe que ambos tinham saboreado bem aquela pequena troca de palavras. “Amanhã será novo
dia” – pensou, antes de olhar para a sua varanda. Sentia-se com mais forças, as pernas estavam a reagir melhor e o caminhar tornara-se mais enérgico. “Até amanhã!” – despediu-se ele do
jardim.
Os dias que se seguiram foram passados com mais ânimo, à medida que os homens se iam conhecendo melhor. A vida não voltara a ser a mesma
de tempos felizes, nem as ausências foram preenchidas mas acabaram por chegar à conclusão que estavam os dois a precisar de uma boa amizade, como forma de poderem ultrapassar melhor as
dolorosas recordações e os vazios que a vida lhes tinha entregado. Afinal, ele tinha a certeza que conhecia aquele homem: do alto da sua varanda, de portadas abertas à felicidade, ele a sua
amada mulher tinham observado, imensas vezes, aquele casal chegar, de mão na mão, sentarem-se naquele mesmo banco e, o mesmo ritual de agora, repetir-se vezes sem conta! Ele só não sabia que
aquele homem lia aquele mesmo poema, em honra à esposa que lhe falecera, cega pelo agudizar da doença… Tal como a sua mulher, também ela adorava poesia e, especialmente, os sonetos de Camões;
daí que o seu novo amigo lesse todos os dias, naquele local, aquele poema de saudade e de amor, lembrando quem tanto amara!
Finalmente, as portadas do quarto que abriam para a varanda de onde se avistava o banco do jardim onde, agora, ele se sentava olhando
essas mesmas portadas, foram abertas, de par em par, como as folhas do livro onde o amigo guardava o pedaço de papel embebido no perfume que a esposa mais gostava de usar. O Sol recomeçou,
assim, a aquecer o leito por detrás das portadas daquele quarto, embora ele nunca mais tivesse conseguido dormir nele. Agora, também ele transportava consigo o livro de poemas que tinha
estado esquecido em cima da sua mesa-de-cabeceira e, à vez, cada um deles lia primeiro um poema dedicado às suas companheiras de sempre. Sabia bem, aliviava, comungava-se a solidão e
partilhavam-se as dores. Após as leituras dos poemas, já não se liam livros mas, na sua vez, falava-se da história de cada, dos planos concretizados e dos que ficaram por fazer, dos filhos e
da ausência deles e, até, por vezes, de futebol!
Já sabiam muito da vida de cada um, excepto o nome. Nunca tinham sentido a necessidade de se tratarem pelo nome, eram simplesmente
AMIGOS e, isso, chegava! “Bom-dia, amigo!” – e, desta forma, se saudavam, pela manhã. Falavam dos poemas que haveriam, ainda, de ler e da vida feliz que tinham tido outrora. Os pombos
passaram a ter mais pão para comer e, como consequência natural, mais pombos apareceram. “Quando um de nós não vier, o outro deve lembrar que há sempre um amanhã para viver, honrando quem nos
fez felizes!” – tinha dito um deles. “Até amanhã, amigo!” – Assim se despediam, depois de combinarem encontrar-se no mesmo local no dia seguinte. E, assim, os dias se sucediam, preenchendo e
sendo preenchidos, um após outro, como as folhas das árvores iam preenchendo os caminhos do jardim, num sinal prematuro da chegada do Outono. As árvores iriam ficar desprotegidas, à mercê das
intempéries e o jardim iria ficar numa espécie de casulo, hibernando, até que a Primavera anunciasse novo ciclo de vida. Seria a Natureza a revelar-se no seu mais elevado esplendor! A
conversa tinha ficado por aqui e seria a vez de ele ler primeiro o poema preferido da esposa.
No entanto, o dia seguinte, desta vez, foi, apenas, outro dia. O amigo que lia poemas no jardim não apareceu. Não voltou a aparecer,
soçobrou ao Outono e marcou encontro com a companheira, levando com ele um pedaço de papel perfumado com um soneto de amor eterno inscrito. Estava, de novo, só, sujeito aos frios da solidão e
ao peso dos silêncios.
Quando, por fim, a Primavera se anunciou, os primeiros raios de Sol pousaram, de mansinho, nas portadas da varanda, que se abriram de
par em par para o jardim que ressuscitava de vida, tornando-se no anfitrião desejado e apetecível para gente e outros seres, que se espalhavam e se encontravam, com os outros e com eles
próprios. Depois de arrumar os poucos haveres fora do lugar e engolir qualquer coisa para sustentar o corpo, pegou no livro de poemas guardado cuidadosamente na estante da sua sala, desde o
Outono anterior e saiu para a rua.
Entrou resoluto pelo jardim, olhou em volta e verificou que todos os bancos já estavam ocupados, àquela hora. Aproximou-se do seu banco.
A um dos extremos, estava um homem com a cabeça recostada no antebraço que deslizara para a cabeceira das tábuas. Podia dizer-se que estava ausente, sentindo-se como que abandonado,
amargurado com a vida, triste e só. Acercou-se do banco e, polidamente, perguntou: “Bom-dia, amigo! Dá licença que me sente?”. O outro homem remexeu-se mas nada disse, como se tentasse evitar
responder àquela voz. Talvez não quisesse ser incomodado no seu sofrimento. De forma cuidadosa, sentou-se. Os pombos, como que adivinhando a sua presença, começaram a chegar em bandos e foram
brindados por pedaços de pão que ele tinha trazido. Depois, perante o silêncio da resposta que ele calculava ainda não aparecer, por enquanto, tirou um livro de dentro do saco de plástico,
abriu as folhas de par em par, pegou num pedaço de papel que embebera no perfume preferido da companheira, encostou-o com suavidade ao rosto, absorvendo o seu aroma e começou a ler:
“Alma minha, gentil, que te partiste
tão cedo desta vida descontente,
repousa lá no Céu, eternamente,
e viva eu, cá na Terra, sempre triste…”.
Sem se deter nem ser interrompido, por um instante que fosse, bebeu as palavras até ao último gole:
“Roga a Deus, que teus anos encurtou,
que tão cedo de cá me leve a ver-te,
quão cedo de meus olhos te levou”
Depois de beijar o pedaço de papel sagrado, guardou o poema nas mesmas páginas do livro, com toda a gentileza, e começou a ler o livro
que o amigo lhe recomendara. Quando o Sol o convidou a ir embora, levantou-se calmamente e dirigiu-se para uma das saídas do jardim. Ainda não tinha dado dois passos, voltou-se ligeiramente
para o lugar onde o homem infeliz se encontrava e despediu-se: “Até amanhã, amigo!”. Não esperando por resposta, continuou o lento caminhar, olhou sorridente para a sua varanda e saiu do
jardim. Há sempre um amanhã para viver!