UM DIA NA VIDA DE
AMELIA
Não precisei de luz, para
acordar… hoje especialmente, mas não há noite sem luz para mim. Passo-as todas em claro, eu e uma outra que habita em mim e que teima em não me abandonar. Talvez ela seja a única que ainda não me
abandonou… todos acham que estou louca mas o que eles não sabem é que somos duas: eu a querer sossegar eternamente e a outra eu a acordar-me de cada vez que adormeço. Por isso, nunca preciso de
luz, nas manhãs que os outros nem sabem que existem. Estou sempre vigilante e ausente… estamos!
Mas hoje, especialmente
hoje, não haveria luz nem ruído algum de que eu necessitasse para me acordar, caso tivéssemos adormecido. Improvável, mas…
Ainda ninguém tinha chegado
para pôr para fora da cama os meus companheiros de final de caminhada, neste Lar de (chamam assim) Idosos, já eu andava de um lado para o outro, atarefada em encontrar a roupa que melhor me
assentaria. Mas, claro, se uma mulher dificilmente escolhe, logo à primeira, o conjunto de trapinhos que melhor se adéqua à sua personalidade ou a um dado momento, imagine-se agora duas mulheres
para uma única opção! E que duas! Sim, pois eu hoje também estava bastante interventiva e contrariava facilmente a minha companheira… no fundo, parecia-me que, embora não o dizendo, ela também se
alegrava com a minha desenvoltura, o meu arreganho inesperado! Eu estava surpreendendo-a e este inesperado, até para mim mesma, satisfazia-me sobremaneira… satisfazia-nos, sei bem!
Assim, bem cedo, às horas a
que se chama de madrugada, já eu estava despachada! O vestido tinha sido eu a escolher, de acordo com o acontecimento, e os sapatos, a malinha de mão, o cinto e o perfume tinham ficado para
escolha da minha parceira, que se sentira honrada em fazer parte do lado de fora das duas! O banho, as pinturas, o cabelo e as unhas, permiti-me guardá-las para uma dessas senhoras, a
Cristininha, que aqui vem lembrar-nos de que ainda respiramos e que a nossa cruz não é aquela pendurada em todas as paredes deste enorme casarão, por onde deslizam sombras que se designam por
seres religiosos que, de vez em quando, nos atormentam mais do que o mafarrico! A nós as duas, claro! Os outros… esses, já nem dão pela existência deles, muito menos pela nossa! E nós,
constantemente, sentimo-nos vitoriosas! Pensam que também já não existimos, mas enganam-se! Redondamente e a dobrar!
Assim que a alvorada soou,
não causamos grande alarido por já estarmos a pé mas, sim, pela beleza que exibimos! Gostaríamos que vocês os vissem! Pareciam fantasmas assustados!!! E nós? Nós sempre com uma postura muito
digna, muito vertical, quase senhorial, saboreando o momento, como se ele fosse eterno! E o colar! O colar que a Cristininha me escolhera para usar mais logo, ficava-me mesmo bem! Devo confessar,
eu estava linda!
Mas, como em quase tudo na
vida, nada dura para sempre, passado o assombro inicial, já ninguém se interessava por nós, excepto alguns dos companheiros que ainda não se tinham apercebido que já estavam fora da cama, com os
olhos fixos no nada, talvez pensando o mesmo que nós, noutros dias, mas hoje… hoje seria impossível, tal é o nosso aparato e agitação! Estávamos vistosas e facilmente avistáveis!
O pequeno-almoço passou num
repente e tivemos imenso cuidado em não sujarmos a linda roupa que nos aprimorava o corpo e embelezava a alma! Lavamos muito bem a dentadura, fizemos umas quantas caras tolas para o espelho que
nos respondeu na mesma moeda e treinamos algumas poses corporais de que nunca nos esquecêramos! Ainda temos escondidos os nossos truques femininos, nas mangas de toda a nossa roupa! Eh!
Eh!
A manhã foi passando muito
dificilmente… os minutos pareceram horas e as horas pareceram séculos, enquanto nós esperávamos encostadas ao vidro da porta do Lar! Sabíamos que, mais minuto menos minuto, a minha filha, o genro
e os netos aí apareceriam sorridentes e felizes por me verem tão linda e feliz por eles e por mim mesma e nos levariam para casa. Hoje, especialmente.
Eu sei que eles não me podem
ter lá em casa, durante todo o tempo. A vida está difícil, o espaço é reduzido, não há cama para mim, os netos vão crescendo, já são dois os animais domésticos e o dinheiro não dá para tudo! Sei
que não é por vontade deles que aqui estou, acredito neles, apesar da minha companheira de alma me contrariar e dizer que eles usam o meu dinheiro da reforma para usufruto deles! Eu acho que é a
vida! É…! Eu entendo-os…
Assim, com as minhas
ansiedades e sobressaltos momentâneos, a hora do almoço chegou num ápice mas eles ainda não tinham chegado! Coitados, deviam estar preocupados, pelo atraso… alguma coisa acontecera, eu tinha a
certeza! A minha amiga estava sempre a enervar-me, a envenenar-me, dizendo que eles se tinham esquecido de nós mas eu sabia que não! Sabia que não poderia ser assim!
Estávamos encostadas ao
vidro da porta e daí via tudo o que se passava na rua, todos os que entravam e saíam… tinha a certeza de que eles estariam a chegar, não tardaria nada! Tinha a certeza de que seria uma consoada
consolada! Eu tinha esperado por aquela noite sagrada, em família, junto de quem tanto amava e que tinha a certeza de que também me amavam, de tal forma que até já me tinha recordado de todos os
cânticos de Natal da minha meninice, para cantar aos meus netos! E eu sabia que eles iriam adorar! Parecia-me já os estar a ver, surpreendidos por eu cantar tão bem e por ainda me lembrar de
tanta coisa bonita! E mais… eu estava segura de que eles ainda iriam pedir mais! “Mais uma vez, avozinha!”, diriam eles e eu, eu claro que lhes faria as vontades! E o dia seria assim passado em
felicidade! A noite seria quente e vivida em volta da mesa, rindo e celebrando com amor, com muito amor!
E ali continuava eu e a
minha companheira de alma, com a cara encostada ao vidro, esperando pela minha família, que estaria prestes a chegar! O que eu já não conseguia, agora, suportar eram aquelas pessoas de volta de
mim, dizendo tontices e palermices!!! A convidarem-me a sair dali, de onde podia ver a rua e de onde iria ver a minha família chegar, a qualquer momento… diziam-me para desistir de esperar! Mas
eu negava-me a sair de onde estava, porque o meu coração não admitia outra coisa que não fosse, de um momento para o outro, ver aparecer aqueles sorrisos que eu tão bem vincara na minha
imaginação! A minha companheira também não me ajudava nada! Não me dava a paz que eu precisava! Mas eu sabia que eles viriam, apenas estavam atrasados... acontece, por vezes! Seria impossível a
minha filha esquecer-se de mim! Não! Isso seria impossível, de todo!
“Larguem-me!”, gritava eu
para quem me queria arredar dali, junto ao vidro, olhando para a rua cada vez com menos gente. Já tinha passado a hora de almoço! Os meus familiares deviam estar aflitos, pobrezinhos… deviam
estar preocupados comigo, pensando que eu estava a sofrer pelo seu atraso casual, mas eu acreditava neles, eu acreditava… Não! Não sairia dali! O relógio maldito também estava a ser meu inimigo e
teimava em não parar e os seus ponteiros corriam ainda mais depressa à volta do mesmo ponto! Já toda a gente tinha almoçado no Lar e estavam todos em redor do ponto onde eu estava, mas não
estavam à espera de ver chegar ninguém… apenas eu ainda acreditava! Eles olhavam e esperavam ver até quando eu aguentaria ficar ali.
Que teria acontecido de tão
grave? Deviam ter tido algum acidente! Nem queria pensar naquilo, nessa triste ideia que acabara de ter tido! E as pessoas à minha volta estavam cada vez mais teimosas… não me largavam, não me
deixavam em paz, esperando os meus queridos! Eles deviam saber que os familiares não esquecem familiares! Os filhos não esquecem os pais, pois não? Eu nunca esqueci os meus! Nunca esqueci a minha
filha… seria impossível ela esquecer-se de mim… eu não sou uma coisa, não sou um objecto!
Mas o tempo estava a
derrotar-me. Confesso… a minha companheira também estava a vencer-me… e se me esqueceram mesmo? Não podia ser verdade, pois não? Ouvia, agora, atrás de mim, alguém ter telefonado… sim, parece que
se esqueceram mesmo… que tinham perdido muito tempo nas compras de última hora… e eu não compreendia bem como podia isso ter acontecido… eu nunca me esqueci, nem dos pais, nem da filha… devia ser
engano…
Mas não, afinal, não era
mesmo engano… desisti, recolhi. Este ano já não haveria Natal, nem cânticos, nem consoada, nem alegria, nem felicidade, nem família… já não haveria mais Natal algum.
Desisti… dei o comando dos
passos à minha companheira… certamente ela não saberia o que fazer, o que era bom… voltaria a não ser notada, seria igual a todos os outros que nem sabem que já morreram… seria apenas mais uma na
noite a que vão chamar de Natal, este ano aqui, juntamente com vários outros que as famílias se atrasaram em vir buscá-los em anos anteriores!
Mais tarde, ouvi dizer que
queriam vir buscar-me ainda nessa tarde… mas eu disse que não. Eu já tinha esquecido os cânticos, já despira e guardara para sempre a roupa onde cabiam duas de mim, as pinturas já tinham ido com
a água e o perfume desvanecera por completo! Agora, era eu que não queria ir! Sou uma mulher digna! Sempre o fui! Sempre fui uma senhora com honra! Agora, não! Agora, fico à espera de um Natal
que não vai passar por aqui! Que não vai entrar por aquela porta onde estive, a olhar pelo vidro, para a rua, esperando que a minha família chegasse!
Ainda continuo bonita… gosto muito deste colar!
Autor: Vitor C. 26/07/2015